quarta-feira, 31 de março de 2010

UMA MULHER CHAMADA GUITARRA

"Um dia, casualmente, eu disse a um amigo que a guitarra, ou violão, era " a música em forma de mulher". A frase o encantou e ele a andou espalhando como se ela constituisse o que os franceses chamam, un mot d'espirit. Pesa-me ponderar que ela não quer ser nada disso; é, melhor a pura verdade dos fatos.

O violão é não só a música (com todas as possibilidades orquestrais latentes) em forma de mulher, como, de todos instrumentos musicais que se inspiram na forma feminina - viola, violino, violoncelo, contra-baixo- o único que representa a mulher ideal: nem grande, nem pequena; de pescoço alongado, ombros redondos e suaves, cintura fina e ancas plenas; cultivada mas sem jactância; relutante em exibir-se, a não ser pela mão daquele a quem ama; atenta e obediente ao seu amado, mas sem perda de carácter e dignidade; e, na intimidade, terna, sábia e apaixonada.

Há mulheres violino, mulheres-violoncelo e até mulheres-contrabaixo.

Mas como recusam-se a estabelecer aquela íntima relação que o violão oferece; como negam-se a se deixar cantar, preferindo tornar-se objeto de solo ou partes orquestrais; como respondem mal ao contato dos dedos para se deixar vibrar, em benefício de agentes excitantes como o arco e palhetas, serão sempre preteridas, no final, pelas mulheres-violão, que um homem pode, sempre que quer, ter carinhosamente em seus braços e com ela passar horas de maravilhoso isolamento, sem necessidade, seja de tê-la em posições não cristãs, como acontece com os violoncelos, seja de estar obrigatoriamente de pé na frente delas, como se dá com os contrabaixos.

Mesmo uma mulher bandolim, (vale dizer, um bandolim), se não encontrar um Jacob pela frente, está roubada. Sua vóz é por demais estrídula para que a suporte por mais de meia hora.

E é nisto que a guitarra, ou melhor o violão (vale dizer, a mulher-violão), leva todas as vantagens. Nas mãos de um Segóvia, de um Barrios, de um Sanz de la Mazza, de um Bonfá, de um Baden Powell, pode brilhar tão bem em sociedade como um violino nas mãos de um Oistrakh ou um violoncelo nas mãos de um Casals. Enquanto que aqueles instrumentos dificilmente irão atingir a pungência ou a bossa peculiares que um violão pode ter, quer tocado canhestramente por um Jayme Orvalle ou um Manuel Bandeira, quer "passado na cara" por um João Gilberto ou mesmo o criolo Zé-com-fome, da favela do Esqueleto.

Divino, delicioso instrumento que se casa tão bem com o amor e tudo que, nos instantes mais belos da natureza, induz ao maravilhoso abandono! E não é à toa que um de seus mais antigos ascendentes se chama viola-de-amore, como a prenunciar o doce fenômeno de tantos corações diariamente feridos pelo melodioso acento de suas cordas...Até na maneira de ser tocado- contra o peito- lembra a mulher que se aninha nos braços de seu amado e, sem dizer nada, parece suplicar com beijos e carinhos que ele a tome toda, faça-a vibrar no mais fundo de si mesma, e a ame acima de tudo, pois do contrario ela não podera ser nunca totalmente sua.

Ponha-se no céu alto uma lua tranquila! Pede ela um contrabaixo? Nunca! Um violoncelo? Talvez, más só se por trás dele houvesse um Casals. Um bandolim? Nem por sombra! Um bandolim com os seus trêmulos, lhe perturbaria o luminoso êxtase. E eu vos responderei; um violão.

Pois dentre os instrumentos musicais criados pela mão do homem, só o violão é capaz de ouvir e entender a Lua."

Vinicius de Moraes (que para "cantar" uma de suas paixões, 0 Violão, recorre a sua outra paixão, A Mulher.)

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