segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Saudoso Henrique Pinto





Grande mestre, didata do violão, Henrique Pinto (1941-2010), hoje estaria completando 73 anos.




http://www.violaobrasileiro.com/cards/view/10

domingo, 7 de setembro de 2014

O Violão no Brasil depois de Villa-Lobos




"Como o café e o futebol, o violão está indissociavelmente ligado a uma visão sócio-cultural do Brasil, e nossa identidade musical é impensável sem a sua presença. E não é para menos. Instrumentos da família do violão foram já trazidos pelos jesuítas e usados na catequese, e José Ramos Tinhorão afirma que “todos os exemplos de cantigas urbanas entoadas a solo por aqueles inícios do século XVI revelam em comum o acompanhamento ao som de viola”.
Dessa forma, desde o primeiro encontro que define nossa identidade cultural, o violão está presente. Mas sua trajetória é tortuosa. O violão em seu formato atual é, na verdade, um desenvolvimento organológico do séc. XIX. Os instrumentos trazidos pelos jesuítas provavelmente foram as vihuelas, alaúdes e violas – as quais, simplificadas, tornaram-se guitarras barrocas - que, levadas ao interior do país pelos bandeirantes, foram adotadas como o instrumento folclórico nacional por excelência: a viola caipira. Isto, conjugado à marcada diferença cultural entre as classes sociais no período imperial, estigmatizou o violão – como acontecia na Espanha – como o instrumento do populacho, dos capadócios e da marginalidade, em oposição ao piano, que realizava um ideal de bom tom das famílias urbanas mais abastadas.
Até a metade do séc. XIX há uma certa confusão, como atestam as Memórias de um Sargento de Milícias, entre a viola e o violão, mas depois de 1850 já fica clara a diferença entre a viola, um instrumento tipicamente sertanejo, e o violão, ou a guitarra francesa (como era chamada nos métodos à venda no Rio de Janeiro), instrumento favorecido no acompanhamento do cancioneiro popular de tradição urbana. Até este momento, não há uma literatura específica para o instrumento publicada no país; os exemplos existentes são escritos para piano, sem dúvida pelo fato de não haver violonistas capazes de ler música.
O violão também foi adotado como baixo-contínuo dos incipientes grupos de choro, e a má fama decorrente é festejada nos romances de Lima Barreto. Os primeiros defensores sérios do violão como instrumento de concerto, como o engenheiro Clementino Lisboa, o desembargador Itabaiana e o professor Alfredo Imenes, heroicamente se sujeitaram ao ridículo público ao se apresentarem, por exemplo, no Clube Mozart, centro musical da elite carioca.
Os primeiros concertos de violão solo documentados no país foram oferecidos pelo violonista cubano Gil Orozco em 1904 e não chegaram a atrair muita atenção, mas supõe-se que já há um ensino sério de violão clássico nesta época, já que Villa-Lobos admitiu haver aprendido violão pelos métodos do espanhol Dionísio Aguado (1784-1849). Entretanto, aquele que podemos apontar como o primeiro concertista brasileiro não sabia ler música e tocava com o violão invertido, mas com as cordas em posição normal: Américo Jacomino, o “Canhoto” (1889-1928). Canhoto era filho de italianos, o que ilustra uma nova tendência de popularização do violão: a sua adoção pela classe operária imigrante. Não é um mero acidente os luthiers Di Giorgio, Del Vecchio e Giannini terem se estabelecido no Brasil e transformado sua atividade artesanal em linha de produção de instrumentos dentro de poucas décadas. Mas o violão continua sendo ridicularizado na imprensa, como alvo de charges derrogatórias, apesar do enorme sucesso popular de violonistas-compositores como João Pernambuco (1883-1947).
O ano da virada da casaca é 1916, quando o crítico do jornal O Estado de São Paulo ouviu e se rendeu à arte do virtuose e compositor paraguaio Agustín Barrios (1885-1944), que residiu no Brasil em decorrência de seu sucesso. No mesmo ano, Canhoto apresentou-se no Conservatório Dramático e Musical com extraordinário êxito.

“É através deste concerto que Américo Jacomino conquista a elite paulistana e assim, possibilitando o início da dissolução do preconceito que freava o desenvolvimento da música para violão”.

A partir de então, a imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro passou a considerar o violão como instrumento de concerto e até a elogiar Barrios, Canhoto e a espanhola Josefina Robledo, aluna de Tarrega que também residiu no Brasil por vários anos.
Como vemos, talvez surpreendentemente, o violão como instrumento de concerto ainda não completou 100 anos no Brasil, o que faz da vulcânica personalidade de Heitor Villa-Lobos (1887-1959) um fenômeno ainda mais singular. As contingências sócio-culturais fizeram com que seu instrumento público fosse o violoncelo e que o violão fosse somente um laboratório de fundo-de-quintal, que ele utilizava para penetrar nas rodas de choro. A maior parte das obras que escreveu antes de 1920 perdeu-se, e a Suíte Popular Brasileira (1912-23) só foi publicada décadas mais tarde – à sua revelia – na França. É uma obra característica do período, onde a fronteira entre o idioma clássico e as formas de dança popular não é muito nítida.
Por mais original e promissora que possa parecer a produção da primeira fase de Villa-Lobos, até 1922, há uma nítida mudança de marcha em sua estética que coincide com a residência em Paris nos anos ´20, um fenômeno observado em outros compositores de orientação nacionalista. Parece que a distância e a receptividade do novo ambiente lhe permitiram realizar uma síntese entre uma visão pragmática, que aceita a superposição de influências externas como uma profecia auto-realizada em uma cultura colonizada, e uma visão idealizada, derivada de Rousseau, em que o compositor se via como um bom selvagem, corrompido por estas mesmas influências. A formidável série de Choros, as maiores obras para piano e os 12 Estudos para violão, compostos em 1929, são os frutos mais suculentos dessa síntese.
Seria absolutamente impensável a realização desta obra dentro do contexto acanhado do violão clássico no Brasil dos anos 20. Por mais divergências que Villa-Lobos possa ter tido com o dedicatário, Andrés Segovia, a personagem dominante do violão no século XX, foi, sem dúvida, o vislumbre das possibilidades latentes do violão, permitido pelo extraordinário poder persuasivo de Segovia, que estimulou Villa-Lobos a escrever uma coleção comparável às grandes séries de estudos para piano ou violino. Não é exagero dizer que os 12 Estudos são um divisor de águas dentro da história do violão. De todos os compositores que escreveram inspirados pela arte de Segovia, Villa-Lobos é o único que parte de um conhecimento em primeira mão do arcabouço técnico do instrumento para a realização de uma linguagem individual, que incorpora uma luxuriante paleta harmônica e um compromisso com a inovação no discurso musical. Prova da qualidade visionária destas obras é a espera, até 1947, para que Segovia as incluísse em seus programas e até 1953 para que fossem publicados. Neste hiato, Villa-Lobos já havia retornado definitivamente ao Brasil, e sua linguagem havia dado uma guinada na direção de um certo conservadorismo positivista e neo-clássico que pode ser detectado na sua série de 5 Prelúdios (1940).
O legado de Villa-Lobos é tanto uma benção como um peso para os compositores da geração posterior. Seus Prelúdios e Estudos são as obras mais populares do violão no séc. XX, tocados por todos os violonistas de qualquer nível de excelência, e gravados centenas de vezes. Seu Concerto para violão e orquestra de 1951 é uma das poucas obras brasileiras, talvez a única, com lugar assegurado no repertório internacional do gênero. As possibilidades de reconhecimento internacional, assim abertas para um compositor brasileiro, podem ser um tremendo fator de inibição, pelo temor à epigonia.
Some-se a isso o fato de que uma sólida cultura clássica para o violão ainda tardou algumas décadas para cristalizar-se no Brasil. O perfil de Barrios ou Canhoto não era suficientemente “clássico” para o projeto artístico de Villa-Lobos, e a importante contribuição de professores como Attilio Bernardini (1888-1975) teve conseqüências mais visíveis no campo do violão popular. A distinção entre o violão de concerto e o violão popular foi gradualmente se acentuando nos anos 1930, 40 e 50 e alguns dos músicos de maior visibilidade, como Dilermando Reis (1916-1977), Aníbal Augusto Sardinha, o “Garoto” (1915-1955), e Laurindo de Almeida (1917-1995), construíram quase que a totalidade de suas carreiras à sombra da Era do Rádio, criando um vasto repertório seresteiro no caso de Dilermando, incorporando alguns elementos impressionistas que apontam para a bossa-nova no caso de Garoto, ou simplesmente estabelecendo-se nos EUA como um músico de jazz no caso de Laurindo.
Não obstante as limitações destes grandes artistas na esfera do violão clássico, eles estabeleceram uma relação próxima e estrearam algumas obras do compositor que mais se esforçou em enfraquecer as barreiras entre a música clássica e a música popular de qualidade: Radamés Gnatalli (1906-1988), que assim tornou-se o autor da obra violonística mais significativa e numerosa a partir dos anos 50, incluindo 5 concertos para violão e orquestra (1952, 53, 55, 61 e 68). A advocacia de sua obra ministrada mais tarde por violonistas da esfera clássica estimulou-o a compor extensivamente e criar obras de considerável interesse, como a Brasiliana no.13, a Suíte, os 10 Estudos, os 3 Estudos de Concerto e Alma Brasileira; seu legado se estende à música de câmara com a suíte Retratos para 2 violões, a Sonatina para flauta e violão, uma Sonata para violoncelo e violão e outra para violoncelo e 2 violões, além de inúmeros arranjos que incluem o violão num contexto semi-orquestral. A obra de violão de Gnatalli traz todas as melhores qualidades e os mais evidentes problemas de sua produção como um todo: a excelente escrita instrumental, as inesperadas soluções harmônicas e o verdor da inspiração, mas também a notória falta de paciência com o acabamento e um caráter sonambulístico e quase-improvisatório que, sob um certo ponto de vista, pode ser uma qualidade. Depois de Villa-Lobos, a obra de violão de Gnatalli é a mais apreciada e freqüentemente tocada no exterior.
Por um lado, o rádio enfraqueceu as distinções de classe através do gosto musical e transformou-as numa massa indistinta chamada “ouvinte”, disposta a ouvir o violão sem preconceitos; em 1928, o interesse pelo instrumento é vasto o suficiente para o surgimento de uma revista, “O Violão”, no Rio de Janeiro. Por outro, ainda faltava uma metodologia que permitisse o surgimento de um número significativo de concertistas de violão que preenchessem um vazio só ocasionalmente quebrado por raras visitas de artistas internacionais como Regino Sainz de la Maza, Andrés Segovia (a partir de 1937) e Abel Carlevaro (nos anos 40).
O desenvolvimento desta metodologia veio com o uruguaio Isaías Sávio (1902-1977), que se estabeleceu em São Paulo nos anos 30. Sávio foi um concertista de modestos recursos, mas um devotado professor e autor de mais de 100 peças originais para violão, algumas das quais, como a Batucada das Cenas Brasileiras, perduram no repertório. Ele teve um papel considerável na promoção do violão dentro do establishment musical do país, publicou dezenas de métodos e arranjos, e formou gerações de violonistas que prontamente se estabeleceram como professores em outras capitais, com destaque para Antonio Rebello (1902-1965) no Rio de Janeiro. A Sávio também devemos a criação do curso oficial de violão nos conservatórios e, pouco antes de falecer, nas universidades. Ele teve a sensibilidade de não sufocar a natural vocação do violão brasileiro para o cross-over e, entre seus alunos, podemos contar tanto um Luís Bonfá ou um Toquinho quanto um Carlos Barbosa Lima.
A relação de Sávio com os compositores “sinfônicos” foi algo tímida; a instrução dos compositores custou a incorporar a técnica de escrita para violão – uma novidade que Segovia havia imposto a compositores como Ponce e Turina nos anos 20 -, o exemplo de Villa-Lobos provou-se um ideal alto demais para se alcançar, e a falta de seriedade com que se encarava o violão no início do século ainda criou reverberações nos anos 40 e 50. Some-se a isso o desfavor em que a estética nacionalista caiu após a revolução de 1964 e temos um desconfortável e algo vergonhoso hiato na incorporação da obra de Camargo Guarnieri, Lorenzo Fernandez e Francisco Mignone ao repertório internacional de violão.
Camargo Guarnieri (1907-1993) seria, levando-se em conta seu implacável artesanato e concisão, o compositor ideal para dar continuação ao fio condutor de Villa-Lobos, mas na prática isso não aconteceu. Ele se exasperava com as dificuldades de se escrever bem para o instrumento, e seu único Ponteio (1944, dedicado a Carlevaro) para violão não tem o mesmo carisma dos homônimos pianísticos. Seus 3 Estudos (no.1: 1958, nos. 2 e 3: 1982), apesar de extraordinários como composições, apresentam um caráter torturado e esotérico que apela somente aos intérpretes mais intelectualmente inclinados. As 2 Valsas-choro (1954, 1986) são obras bem mais simpáticas, mas, como de praxe em Guarnieri, a 2a delas ainda não está sequer editada. Lorenzo Fernandez (1897-1948) foi ainda menos generoso: deixou somente um pequeno Prelúdio (1942) de parco interesse e um arranjo da Velha Modinha (1938, original para piano como parte da Segunda Suite Brasileira) dedicado a Segovia, que freqüentemente é tocado como bis.
Se a contribuição destes compositores magnos de nosso nacionalismo é numericamente decepcionante, o mesmo não se pode dizer de Francisco Mignone (1897-1986). Suas primeiras tentativas de escrever para o violão foram bem modestas, mas em 1970 ele produziu a série de 12 Valsas, em todos os tons menores, e 12 Estudos que, sem manifestarem o ímpeto renovador de Villa-Lobos, ocupam uma posição quase tão alta quando a dele no repertório brasileiro pela precisão de escrita, inventividade no tratamento instrumental e variedade de expressão. Seu quase total desaparecimento do repertório internacional é um acidente de percurso, e nenhuma outra obra da escola nacionalista merece maior atenção. O mesmo deve ser dito do Concerto para violão e orquestra (1976), possivelmente a mais bem-concebida obra brasileira do gênero, mas que ainda não teve a chance de ser plenamente avaliada devido ao seu quase-ineditismo. Duas peças curtas, Canção Brasileira (1970) e Lenda Sertaneja (1982) completam um corpus de obras para violão de máximo interesse.
A paixão de Mignone pelo violão em seu último período criativo foi causada em grande parte pelos frutos colhidos da profissionalização do ensino de violão no país. Os anos 60 e 70 marcam não só uma extraordinária expansão do ensino do violão popular com o advento da bossa-nova, mas também a consolidação da carreira internacional de uma geração: Carlos Barbosa Lima (n.1944), Turíbio Santos (n.1940), Sérgio (n.1948) e Eduardo Abreu (n.1949), Sérgio (n.1952) e Odair Assad (n.1956) e, mas tarde, Marcelo Kayath (n.1964). A percepção do Brasil como o país do violão deve muito a estes dois eventos conjugados. O cenário nacional também se beneficiou desse arranque e uma nova geração de didatas se estabeleceu neste período, com destaque para Henrique Pinto (n.1941) e Jodacil Damaceno (n.1929).
Junto com Isaías Sávio, estes violonistas foram o ponto de referência para toda uma geração de compositores nacionalistas que deixaram itens isolados de considerável interesse, como José Vieira Brandão (1911-2002) com o Mosaico, Walter Burle-Marx (1902-1991), autor de Bach-Rex e Homenagem a Villa-Lobos, Souza Lima (1898-1982) com seu Cortejo e Divertimento, e Lina Pires de Campos (1918-2003), autora de 4 Prelúdios e Ponteio e Toccatina. Três compositores já falecidos merecem uma menção particular pela sua importância dentro da vida musical brasileira: Cláudio Santoro (1919-1989), autor de um Estudo, um Prelúdio e da Fantasia Sul América; Theodoro Nogueira (1913-2002), autor de extensa obra que inclui 6 Brasilianas, 5 Valsas-Choro, 4 Serestas, 12 Improvisos e um Concertino para violão e orquestra; e César Guerra-Peixe (1914-1993) autor de 6 Breves, 10 Lúdicas, 4 Prelúdios e da primeira Sonata brasileira para violão, de 1969, uma obra extremamente engenhosa da sua fase nacionalista.
Os anos da ditadura militar provocaram uma dramática re-configuração da vida musical do país. A considerável repressão da liberdade de expressão forçou artistas e intelectuais a tomarem posições drásticas. Compositores de tendência governista não tiveram sucesso em persuadir as autoridades da necessidade de um desenvolvimento contínuo da educação musical, e tiveram de responder por isso depois da abertura nos anos 80. Uma maioria de compositores opostos ao regime refugiou-se na rotina do ensino universitário e, seguindo o modelo americano, cristalizou um sistema de ensino acadêmico que prescinde da atuação no dia-a-dia do compositor profissional e encoraja o surgimento de “processos’ composicionais que muitas vezes só podem ser decodificados por colegas. Ao mesmo tempo, a participação ativa dos cantores/compositores de MPB no processo de abertura política relegou os compositores clássicos a uma posição secundária dentro do meio cultural e a um recrudescimento do interesse da imprensa pela produção de concerto, uma situação que não parece passível de reversão num futuro próximo.
O violão, como um natural mediador, no Brasil, entre o universo da música clássica e da popular, encontrou-se subitamente numa posição privilegiada. Intérpretes como Barbosa Lima, Turíbio Santos e o duo Assad, inicialmente escolados na tradição clássica do violão, hoje atuam numa tênue linha divisória em que a fronteira entre o que é clássico e o que é música instrumental brasileira não é muito clara. Os compositores ativos criaram seus nichos estéticos, muitas vezes opostos, e foram seduzidos pela garantia de inclusão de suas obras para violão no repertório regular.
Os compositores de orientação pós-nacionalista que mais contribuíram para o repertório brasileiro são Marlos Nobre (n.1939) e Edino Krieger (n.1928). A obra de Marlos Nobre é extensa e de incalculável alcance artístico. Os Momentos I-IV, a Homenagem a Villa-Lobos, as Reminiscências, o Prólogo e Toccata, a Entrada e Tango, as Rememórias e o Concerto para 2 violões e orquestra cobrem 30 anos de produção artística, atestam sua imaginação poderosa e o colocam como um verdadeiro herdeiro de Villa-Lobos, em sua escrita detalhada, robusta realização instrumental e perfeito equilíbrio entre a cor local e as necessidades de um argumento formal de maiores proporções. A considerável dificuldade técnica de suas obras tem se mostrado um fator inibidor, e Nobre é, num plano internacional, mais respeitado que tocado, mas este é um fator que deve ser superado em favor de obras de qualidade superlativa que merecem atenção incondicional. Já Edino Krieger obteve considerável sucesso com sua Ritmata de 1974, e suas obras mais recentes, Passacaglia in Memoriam Fred Schneiter e seu Concerto para 2 violões e orquestra parecem prontas a seguir o mesmo caminho. Um compositor de produção mais mirrada, mas de sumo interesse, é Osvaldo Lacerda (n.1927), autor de três encantadoras peças, Moda Paulista, Ponteio e Valsa Choro. Um item isolado de Ronaldo Miranda (1941), Appassionata, tem merecido uma calorosa acolhida internacional; a Sonatina de José Alberto Kaplan (n.1935) e a peça de mesmo título de Sérgio Vasconcelos Corrêa (n.1934), também autor de um Concerto, demonstram grande profissionalismo de fatura.
A produção dos compositores independentes, seguindo a esfera de interesse dos intérpretes a quem é dirigida, cobre um amplo espectro de possibilidades estéticas. Almeida Prado (n.1943) realizou experimentos com a sonoridade, comparáveis às suas Cartas Celestes para piano, em Livre pour Six Cordes e Portrait de Dagoberto, dedicado ao violonista paulista radicado na Suíça, Dagoberto Linhares, mas sua Sonata oscila entre uma energia prokofieviana e um nacionalismo desbragado. Outro prolífico compositor de música para violão é Ricardo Tacuchian (n.1939), cuja produção pende entre o nacionalismo urbano da Série Rio de Janeiro e da Imagem Carioca para 4 violões e o experimentalismo sonoro das duas Lúdicas e dos dois Impulsos para dois violões. A exploração de técnicas pouco convencionais encontra em Sighs de Jorge Antunes (n.1942) e no Estudo no.1 para violão e narrador de Rodolfo Coelho de Souza (n.1952) o seu canal de vasão. A polissemia produziu ao menos uma obra de interesse permanente, Que Trata de España de Willy Corrêa de Oliveira (n.1938).
A proliferação de concertistas de atuação local e as óbvias vantagens da colaboração entre eles e compositores ainda não plenamente estabelecidos têm criado espaço para uma atividade extensa, frenética e difícil de avaliar, mas eu apontaria os nomes de quatro compositores nascidos depois de 1960 que apresentam todas as condições para uma plena aceitação no repertório internacional: Alexandre de Faria (n.1972), cuja Entoada foi agraciada com o primeiro prêmio no Concurso Internacional “Andrés Segovia” de composição em 1997, e que desde então tem escrito obras de extrema intensidade teatral, que absorvem alguns elementos do minimalismo, informadas por um raciocínio harmônico personalíssimo e de total intransigência de expressão: o Prelúdio no.1 “Olhos de uma Lembrança” e no.2 “Death of Desire”, além de dois concertos para violão e orquestra, o segundo dos quais, “Mikulov” , foi estreado com sucesso sem precedentes na República Tcheca; Artur Kampela (n.1960), cujas Danças Percussivas, também premiadas num concurso internacional na Venezuela, incorporam elementos de modulação rítimica; Alexandre Eisenberg (n.1966), autor de ambiciosos projetos formais de caráter mais tradicional como o Prelúdio, Coral e Fuga e a Pentalogia; e Marcus Siqueira (n.1974), dono de um refinado ouvido para colorido instrumental, que é ilustrado pelo Impromptu Fragile, Impromptu Móbile e Elegia e Vivo; seu concerto para violão, harpa, celeste e 2 orquestras de câmara Hoquetus, Ecos, Espelhos ainda aguarda estréia. Há também autores de itens isolados de alta qualidade, como Mikhail Malt (n.1957) e seu Lambda 3.99 para violão e sons gerados por computador; Achille Picchi (b.1957), de feição algo mais convencional e bartokiana, com seu Prelúdio, Valsa e Finale e 3 Momentos Poéticos para violão e orquestra; Harry Crowl (n.1958), de genuína erudição, autor de Assimetrias; e Roberto Victorio (n.1959), com seu Tetraktis e um Concerto para violão, flauta e orquestra. Todos estes compositores, com a provável exceção de Faria e Eisenberg, têm de conviver com a nova ordem: dificuldades para publicação, distribuição e registro fonográfico destas obras levam-nos à tábua de salvação das universidades e das sociedades e festivais de música contemporânea; uma aceitação menos circunscrita à sua área de atuação será obra do acaso e do interesse continuado dos intérpretes.
Mais afortunados são aqueles que transitam na tênue linha entre o clássico, o jazz e o instrumental brasileiro. No mundo, e cada vez mais no Brasil, hoje, há uma verdadeira indústria de sociedades, festivais, editoras e companhias discográficas dedicadas exclusivamente ao violão “clássico”, e entenda-se por clássico não uma categorização estética, mas tão somente de técnica instrumental. Uma parcela significativa do público para estes eventos e produtos carece de uma ampla cultura musical e certamente não dispõe de elementos para uma apreciação crítica da produção contemporânea; normalmente são estudantes ou amadores sérios que travaram seu primeiro contato com o violão através do pop ou do jazz. O perfil deste púbico determina a aceitação internacional de compositores-violonistas como Sérgio Assad (n.1952) que, além de ser um dos integrantes do renomado duo Assad, tem intensificado sua produção nos últimos 15 anos; obras como Aquarelle, sua Sonata, a série de Jobinianas, e várias peças para duo de violões como Vitória Régia, Pinote e Recife dos Corais já fazem parte do repertório regular de estudantes do mundo todo. A extensa, variada e instrumentalmente eficiente obra de Paulo Porto Alegre (n.1956), Daniel Wolff (n.1967) e Maurício Orosco (n.1976) parece destinada ao mesmo êxito.
O traço que distingue estes compositores daqueles chamados violonistas “populares” é uma evidente ambição formal decorrente de sua atividade como concertistas. Compositores-violonistas cuja principal atuação é na área dos shows amplificados ou como acompanhantes de cantores ou solistas de jazz tendem a se encarar como herdeiros da tradição de Canhoto, Garoto, Dilermando Reis ou Baden Powell, e suas obras são, conseqüentemente, restritas às formas de canção e dança, o que não as impede de serem adotadas amplamente como material de concerto mundo afora. Êxito incondicional tem obtido a obra de Paulo Bellinati (n.1950), cujo Jongo já foi gravado pelos mais destacados solistas internacionais e que já produziu centenas de obras na mesma veia, mas Marco Pereira (n.1955), Celso Machado (n.1953) e Guinga (n.1950) também têm uma ampla base de admiradores.
Um caso singular encontramos em Egberto Gismonti (n.1944), celebrado internacionalmente como um dos maiores instrumentistas do jazz contemporâneo, mas cujas obras Central Guitar e Variations: Hommage à Webern se alinham à produção experimental de concerto." 
- Fábio Zanon.


Artigo publicado por Fábio Zanon no Fórum Violão Erudito e no site "Violão com Fábio Zanon", em 1 de Maio de 2006.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Luthier William Ramos



Entrevista com o luthier Catarinense William Ramos Nandi, concedida a Marco Cardozo:


Marco Cardozo - Eu tenho um recorte de jornal com uma matéria sobre o seu trabalho como luthier, do início de 2000, soube que as suas primeiras pesquisas de luteria iniciaram no fim dos anos 90, ainda muito jovem. Então qual foi a sua principal motivação na época, para construir um instrumento? 
William Ramos - Em família sempre estive ligado à música. Depois de algum tempo tocando e vivendo de música - toquei guitarra em bandas de baile da região - comecei a me interessar pelo processo de produção dos instrumentos. Isso foi no fim da década de 1990. Ainda existia certa dificuldade em encontrar informações, e o método era muito empírico e também adaptando técnicas oriundas da carpintaria e marcenaria. Produzi inicialmente guitarras elétricas, já que eu estava profissionalmente imerso neste meio.
Poucos anos depois a luteria me conquistou de vez, e com isso parei de tocar para me aperfeiçoar no ofício. Foi onde comecei a produzir efetivamente.


MC - Você fabrica violão clássico, violão exótico de 10 cordas, guitarra romântica, guitarra elétrica maciça, guitarra elétrica semi-acústica, como se dá esse processo, é tudo ao mesmo tempo, ou por temporada? Você também fabrica contrabaixo?
WR - A guitarra elétrica foi o instrumento que me trouxe à luteria. Com o tempo, a necessidade natural de aprofundamento exigiu buscar instrumentos mais elaborados e de fabricação mais complexa. Foi quando, por coincidência, recebi a encomenda de um violão clássico por um músico de minha cidade natal, o Reginaldo Nunes. A partir dali iniciei uma pesquisa mais séria e sistemática sobre a produção de violões. Seus materiais, a acústica e as particularidades em cada tipo de violão, as possibilidades dos projetos mais tradicionais, as limitações dos mais modernos, violões com cordas de náilon e aço...
Com o tempo foi havendo uma evolução necessária e natural que me direcionou para o desenvolvimento de violões de 7 cordas, 10 cordas, guitarra Romântica, guitarra archtop, etc.
Dos instrumentos que me interessavam, já produzi todos. Como tenho a mente muito dinâmica profissionalmente, senti a necessidade de tornar a produção cíclica: a cada período me dedico à fabricação de um tipo de instrumento. Atualmente estou novamente apaixonado por guitarras elétricas (não por coincidência, também voltei a tocá-la...), e estou desenvolvendo alguns modelos meus que devo lançar em 2015. Até ano passado estive produzindo ininterruptamente violões clássicos, e foi o instrumento que mais tempo passei fabricando e pesquisando. Na minha produção de 2011 cheguei à sonoridade que estava em minha cabeça e que eu tanto buscava. Isso foi ótimo! No entanto, parece que a partir daí desafiei-me a alçar novos vôos. Guardei as formas de violões e tampos de abeto, e tirei a poeira de algumas outras ferramentas que estavam na oficina.
Em 2015 não produzirei violões, mas deixarei a lista de espera aberta aos pedidos de violões para o ano seguinte. É como a terra no que ela produz: não podemos exaurir os meios. Esse sistema cíclico mantém meu interesse e energia ligados para retomar a produção em cada período.
Ah, sim. Já produzi contrabaixo também.


MC - Como está o fornecimento das principais madeiras, com cortes apropriados para luthier? Hoje um luthier consegue ainda comprar uma boa peça de Jacarandá Baiano, por exemplo?
WR - Embora os preços subam a cada ano, ainda temos fornecimento regular para todas as madeiras ditas ‘padrão’ a qualquer segmento da luteria. Madeiras que sofreram maior pressão de consumo ao longo dos anos ou possuem alguma restrição/embargo, como é o caso do jacarandá brasileiro, evidentemente são mais difíceis e caras.
No Brasil temos alguns importadores sérios que trabalham há anos e nos quais podemos sempre confiar quanto à procedência. Em outras situações também pode ser necessário comprar diretamente fora do país, o que agrega tributos exorbitantes e que só se vê em um país precário como o nosso. Tributar insumo da mesma forma que se tributa um produto final demonstra uma política de visão pobre e estreita.
 Ainda sobre as espécies mais ameaçadas e raras no mercado, eu gostaria de falar algo que incomoda a mim e a muitos colegas, que é a maneira displicente e quase irresponsável com que alguns novos profissionais usam, por exemplo, o jacarandá. Ok, você comprou a madeira, use-a como bem entender, pode até fazer roda-pé com ela. Mas é triste ver luthieres, às vezes com um ou dois anos de experiência, utilizando madeiras raras como chamariz para vender seus instrumentos. E pior ainda, a estratégia funciona! Isso significa então que os instrumentistas estão comprando pelo material, e não pela sonoridade. Não estou sendo incauto e afirmando que novos luthieres não podem produzir bons instrumentos. Podem sim. Mas certamente ele produzirá melhores instrumentos em 5, 10 ou 15 anos. E por que não ‘afiar’ as ferramentas em madeiras simples e disponíveis e deixar as mais raras para depois? Eu mesmo, que possuo algumas boas madeiras em quantidade razoável e já tenho anos de estrada, por vezes ainda produzo instrumentos com madeiras alternativas.
Novamente destaco que isso só irá mudar quando os violonistas começarem a comprar instrumentos pelo som, e não pelos materiais. Numa época de consciência ecológica, se esconder atrás de um violão com madeiras de renome e sem a exata sonoridade que lhe agrada me parece uma atitude bem irresponsável.


MC - No caso do Violão Clássico, você segue qual escola de luteria, Antônio de Torres, Ignácio Fleta, Hermann Hauser, no que diz respeito ao leque harmônico, e afinação da tampa, principalmente?
WR - Sempre fui apaixonado por instrumentos de construção tradicional. A complexidade do timbre, os acordes com notas bem separadas e pronunciadas, a projeção com mais foco, a dinâmica que se consegue ao menor movimento de mão direita... Tudo isso é o que faz meu coração bater mais forte quando começo um instrumento.
Inspirei-me muito na construção dos violões Hauser e em outros mais contemporâneos e de mesmo padrão, claro que adaptando às minhas necessidades e objetivos.

MC - Você prefere trabalhar com qual tipo de verniz, P.u., Nitro-celulose, ou Goma-laca?
WR - Sobre vernizes, sou grande incentivador do uso da Goma-laca, mas precisamos ser realistas... A Goma-laca é muito sensível, e torna-se difícil tocar de maneira livre e despreocupada (o que considero uma conduta essencial principalmente aos estudantes que estão desenvolvendo intimidade com o instrumento) se tivermos que ficar nos preocupando com o acabamento. Por isso hoje recomendo, como melhor opção para a maioria, verniz sintético para o fundo e as laterais e verniz de Goma-laca no tampo. Em casos especiais, como violões de concerto ou réplicas, o uso integral de Goma-laca.
Ah, existe um mito que se propagou por aí e que acho importante esclarecer. Goma-laca é tão difícil (e leia-se ‘caro’) de se restaurar quanto vernizes sintéticos. O que acontece é que por ser um verniz atóxico e não exigir um aparato quase industrial como é o caso dos sintéticos, ele é mais ‘amigável’ no trabalho de reparos. Mas na soma das horas trabalhadas ambos exigem tempo e dedicação para se obter um resultado de excelência. E esse é outro problema que tenho percebido em muitos violões que aparecem aqui para reparos, mesmo de construtores mais famosos, que é a qualidade do acabamento. Não são poucas as vezes que pego instrumentos com vernizes de acabamento semelhante ao que encontramos em fábricas nacionais. Fica a dica: se o violão de autor que você quer comprar e irá pagar um valor considerável, não tem um acabamento no mínimo ótimo, pense bem sobre todo o resto que está escondido dentro do instrumento...


MC - Eu tive oportunidade de assistir o recital da bacharelando pela Udesc, Amanda Andrade, com um violão William Ramos, e pude perceber que, além de tradicional ele também tinha uma ótima projeção (tanto quanto um Sérgio Abreu), e a forma do corpo se aproximava mais do violão R. Buchet, se não me engano. Como chegou nesse padrão?
WR - Assim como na sonoridade, gosto também de uma estética tradicional para meus violões clássicos. Desenvolvi dois ou três violões antes de chegar às minhas linhas definitivas, bem como altura de caixa e ornamentação. O Bouchet está entre os meus preferidos, com uma aparência sóbria, mas um violão de atitude e linhas imponentes.

MC - Você já fabricou algum violão com engenharia mais moderna, do tipo Australiana, com o uso de tampa ou fundo duplo colado com resina, ou treliça, como os luthieres Greg Smallman, Jim Redgate, etc?
WR - Tive a sorte de testar alguns violões de construção mais moderna antes de iniciar qualquer experiência com eles, e isso me desmotivou bastante. Os violões com materiais sintéticos foram os piores, já os com apenas projetos de leque diferenciado (treliça, grade, etc.) têm as suas qualidades, mas ainda assim não me impressionam. Eu também fabrico violões com cordas de aço, logo, preciso utilizar treliça e x-bracing, por isso não estou sendo leviano. Mas é que justamente por saber onde um instrumento pode chegar, é que não vejo como benefício esses recursos em violões clássicos. Seria ótimo se pudéssemos simplesmente somar as qualidades que eles propõem (volume e projeção) ao instrumento, mas infelizmente muito se perde em complexidade de timbre. Não vejo sentido nisso! Um violão tem as suas limitações, e saber conviver com elas e explorá-las da melhor maneira aumenta a intimidade violão/violonista, que é o que deveria ser mais prezado. Vejo menos sentido ainda quando assisto a concertos em que o violonista usa um violão assim, mas continua microfonando-o. Entretanto cada um sabe (ou deveria saber) aonde quer chegar com sua sonoridade, e por isso é ótimo que tenhamos opções e escolas diferenciadas.


MC - Qual foi a sua motivação para se replicar a guitarra romântica Panormo do concertista Luiz Mantovani? Que madeiras foram utilizadas, como se dá a projeção do som desse instrumento, e qual a medida da escala?
WR - Sempre tive as guitarras românticas como instrumentos de som moderado e limitado. Doce e pueril, semelhante ao Período. E de fato, a maioria soa assim, principalmente devido ao projeto encontrado na maioria delas, que não utiliza leque harmônico, apenas barras transversais. Com a Panormo isso não acontece. Ela tem um timbre rico, pronunciado, tão complexo quanto um violão tradicional, apenas com menor projeção. Mas não estou dizendo ‘pouca’ projeção, e sim menor. Ela soa incrivelmente bem. A maior parte dessa qualidade distinta deve-se ao seu projeto que, diferente das demais guitarras, possui leque harmônico. Louis Panormo, de Londres, utilizou uma ideia que José Pagés, de Cádiz no sul da Espanha, já utilizava em 1800 (sim, não foi Antônio de Torres quem inventou o leque harmônico). Não só a estrutura, mas o design das guitarras de Panormo foi fortemente inspirado nas guitarras de Pagés. No caso de Torres, ele apenas utilizou em um instrumento maior uma idéia já existente, que é o que conhecemos hoje por violão tradicional.
A Panormo de Luiz Mantovani foi construída por Simon Ambridge, e serviu de motivação para eu desenvolver meu projeto. Utilizei esta Ambridge e mais uma planta de Panormo para chegar à minha réplica. Ela tem escala de 330 mm, e as madeiras que utilizo são as mesmas da maioria das Panormos: tampo em Abeto, fundo e laterais em Jacarandá Brasileiro, braço em Cedro com escala e cavalete em Ébano.

 
MC - E o teu violão de 10 cordas que hoje está com o concertista Salomão Habib, conte-nos esta história? Este instrumento foi baseado em alguma engenharia, por exemplo, a do exótico Ramirez do Narcizo Yepes?
WR - Como mencionei, chegou um período em que minha mente e mãos clamavam por desafios, e vi que isso só poderia ser alimentado se eu extrapolasse os limites do convencional. A fabricação de violões de 10 cordas (ou Catedral Guitar) foi parte desse processo. Estudar as necessidades de um instrumento assim, bem como as adaptações em cima do projeto tradicional e sua aplicação, foram um aprendizado muito grande para mim. Outra coisa que me motivou foi o estudo do repertório barroco, que no dez cordas pode ser mais bem explorado.
Esse instrumento pode ter mais que uma finalidade com as cordas extras. Ele pode ser afinado para que os bordões tenham ressonância por simpatia e ocasionalmente sejam usados, como era o caso de Yepes. Afinações com baixos graves, como o 10 cordas que está com Salomão Habib. Ou ainda a afinação reentrante, usada por Egberto Gismonti. Para todas essas situações é necessário um tempo de estudo e muitas adaptações na forma de tocar. Para mim, com meu jeito parco de tocar, foi um desafio muito grande executar qualquer coisa num violão desses.
O violão de dez cordas do Habib era um violão de uso meu, que fiz motivado em estudar o repertório barroco. Quando numa apresentação dele em minha cidade pude apresentar o violão a ele, que comprou o instrumento.

 
MC - Quanto tempo se leva pra se fabricar um violão clássico padrão William Ramos e uma réplica, ou uma guitarra romântica?
WR - O tempo de fabricação sempre depende da quantidade de pedidos, já que trabalho sozinho e individualmente em cada instrumento. Atualmente tenho conseguido manter a lista de espera com um prazo de 12 meses, o que ocasionalmente pode diminuir ou aumentar, mas que é sempre previamente estipulado e informado ao cliente no ato da encomenda. Sou muito rígido com prazos de entregas. Também divido meu tempo entre ajustes/reparos e workshops, o que pode influenciar o ritmo de produção em determinado período.

MC - Se você fosse fabricar um violão pra você, como seria?
WR - É difícil definir um violão ideal quando se pode transitar por tantas opções. Isso é um dilema quando o luthier também é músico e vai escolher algo para si. Mas ainda ficaria com um violão com tampo de Abeto, para ter voz firme e pronunciada, fundo e as laterais em madeira mais densa (Jacarandá, Macacaúba, Indian Rosewood, Cocobolo, etc) para um sotaque expressivo e de resposta rápida, braço em Cedro para equilíbrio e favorecimento da ergonomia, e escala em Jacarandá para ter uma pitada a mais de brilho que o Ébano. Claro que tudo isso em um projeto tradicional. Parece metódico demais, não é? E pensar que aí eu só defini 10% do que realmente é um instrumento...


Agradeço ao Luthier William Ramos pela entrevista, compartilhando conosco um pouco do seu conhecimento e pesquisas.

Entrevista realizada por Rede Social. 

Contato com William: wramosluthier@gmail.com, (48)36269833.