sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Luthier William Ramos



Entrevista com o luthier Catarinense William Ramos Nandi, concedida a Marco Cardozo:


Marco Cardozo - Eu tenho um recorte de jornal com uma matéria sobre o seu trabalho como luthier, do início de 2000, soube que as suas primeiras pesquisas de luteria iniciaram no fim dos anos 90, ainda muito jovem. Então qual foi a sua principal motivação na época, para construir um instrumento? 
William Ramos - Em família sempre estive ligado à música. Depois de algum tempo tocando e vivendo de música - toquei guitarra em bandas de baile da região - comecei a me interessar pelo processo de produção dos instrumentos. Isso foi no fim da década de 1990. Ainda existia certa dificuldade em encontrar informações, e o método era muito empírico e também adaptando técnicas oriundas da carpintaria e marcenaria. Produzi inicialmente guitarras elétricas, já que eu estava profissionalmente imerso neste meio.
Poucos anos depois a luteria me conquistou de vez, e com isso parei de tocar para me aperfeiçoar no ofício. Foi onde comecei a produzir efetivamente.


MC - Você fabrica violão clássico, violão exótico de 10 cordas, guitarra romântica, guitarra elétrica maciça, guitarra elétrica semi-acústica, como se dá esse processo, é tudo ao mesmo tempo, ou por temporada? Você também fabrica contrabaixo?
WR - A guitarra elétrica foi o instrumento que me trouxe à luteria. Com o tempo, a necessidade natural de aprofundamento exigiu buscar instrumentos mais elaborados e de fabricação mais complexa. Foi quando, por coincidência, recebi a encomenda de um violão clássico por um músico de minha cidade natal, o Reginaldo Nunes. A partir dali iniciei uma pesquisa mais séria e sistemática sobre a produção de violões. Seus materiais, a acústica e as particularidades em cada tipo de violão, as possibilidades dos projetos mais tradicionais, as limitações dos mais modernos, violões com cordas de náilon e aço...
Com o tempo foi havendo uma evolução necessária e natural que me direcionou para o desenvolvimento de violões de 7 cordas, 10 cordas, guitarra Romântica, guitarra archtop, etc.
Dos instrumentos que me interessavam, já produzi todos. Como tenho a mente muito dinâmica profissionalmente, senti a necessidade de tornar a produção cíclica: a cada período me dedico à fabricação de um tipo de instrumento. Atualmente estou novamente apaixonado por guitarras elétricas (não por coincidência, também voltei a tocá-la...), e estou desenvolvendo alguns modelos meus que devo lançar em 2015. Até ano passado estive produzindo ininterruptamente violões clássicos, e foi o instrumento que mais tempo passei fabricando e pesquisando. Na minha produção de 2011 cheguei à sonoridade que estava em minha cabeça e que eu tanto buscava. Isso foi ótimo! No entanto, parece que a partir daí desafiei-me a alçar novos vôos. Guardei as formas de violões e tampos de abeto, e tirei a poeira de algumas outras ferramentas que estavam na oficina.
Em 2015 não produzirei violões, mas deixarei a lista de espera aberta aos pedidos de violões para o ano seguinte. É como a terra no que ela produz: não podemos exaurir os meios. Esse sistema cíclico mantém meu interesse e energia ligados para retomar a produção em cada período.
Ah, sim. Já produzi contrabaixo também.


MC - Como está o fornecimento das principais madeiras, com cortes apropriados para luthier? Hoje um luthier consegue ainda comprar uma boa peça de Jacarandá Baiano, por exemplo?
WR - Embora os preços subam a cada ano, ainda temos fornecimento regular para todas as madeiras ditas ‘padrão’ a qualquer segmento da luteria. Madeiras que sofreram maior pressão de consumo ao longo dos anos ou possuem alguma restrição/embargo, como é o caso do jacarandá brasileiro, evidentemente são mais difíceis e caras.
No Brasil temos alguns importadores sérios que trabalham há anos e nos quais podemos sempre confiar quanto à procedência. Em outras situações também pode ser necessário comprar diretamente fora do país, o que agrega tributos exorbitantes e que só se vê em um país precário como o nosso. Tributar insumo da mesma forma que se tributa um produto final demonstra uma política de visão pobre e estreita.
 Ainda sobre as espécies mais ameaçadas e raras no mercado, eu gostaria de falar algo que incomoda a mim e a muitos colegas, que é a maneira displicente e quase irresponsável com que alguns novos profissionais usam, por exemplo, o jacarandá. Ok, você comprou a madeira, use-a como bem entender, pode até fazer roda-pé com ela. Mas é triste ver luthieres, às vezes com um ou dois anos de experiência, utilizando madeiras raras como chamariz para vender seus instrumentos. E pior ainda, a estratégia funciona! Isso significa então que os instrumentistas estão comprando pelo material, e não pela sonoridade. Não estou sendo incauto e afirmando que novos luthieres não podem produzir bons instrumentos. Podem sim. Mas certamente ele produzirá melhores instrumentos em 5, 10 ou 15 anos. E por que não ‘afiar’ as ferramentas em madeiras simples e disponíveis e deixar as mais raras para depois? Eu mesmo, que possuo algumas boas madeiras em quantidade razoável e já tenho anos de estrada, por vezes ainda produzo instrumentos com madeiras alternativas.
Novamente destaco que isso só irá mudar quando os violonistas começarem a comprar instrumentos pelo som, e não pelos materiais. Numa época de consciência ecológica, se esconder atrás de um violão com madeiras de renome e sem a exata sonoridade que lhe agrada me parece uma atitude bem irresponsável.


MC - No caso do Violão Clássico, você segue qual escola de luteria, Antônio de Torres, Ignácio Fleta, Hermann Hauser, no que diz respeito ao leque harmônico, e afinação da tampa, principalmente?
WR - Sempre fui apaixonado por instrumentos de construção tradicional. A complexidade do timbre, os acordes com notas bem separadas e pronunciadas, a projeção com mais foco, a dinâmica que se consegue ao menor movimento de mão direita... Tudo isso é o que faz meu coração bater mais forte quando começo um instrumento.
Inspirei-me muito na construção dos violões Hauser e em outros mais contemporâneos e de mesmo padrão, claro que adaptando às minhas necessidades e objetivos.

MC - Você prefere trabalhar com qual tipo de verniz, P.u., Nitro-celulose, ou Goma-laca?
WR - Sobre vernizes, sou grande incentivador do uso da Goma-laca, mas precisamos ser realistas... A Goma-laca é muito sensível, e torna-se difícil tocar de maneira livre e despreocupada (o que considero uma conduta essencial principalmente aos estudantes que estão desenvolvendo intimidade com o instrumento) se tivermos que ficar nos preocupando com o acabamento. Por isso hoje recomendo, como melhor opção para a maioria, verniz sintético para o fundo e as laterais e verniz de Goma-laca no tampo. Em casos especiais, como violões de concerto ou réplicas, o uso integral de Goma-laca.
Ah, existe um mito que se propagou por aí e que acho importante esclarecer. Goma-laca é tão difícil (e leia-se ‘caro’) de se restaurar quanto vernizes sintéticos. O que acontece é que por ser um verniz atóxico e não exigir um aparato quase industrial como é o caso dos sintéticos, ele é mais ‘amigável’ no trabalho de reparos. Mas na soma das horas trabalhadas ambos exigem tempo e dedicação para se obter um resultado de excelência. E esse é outro problema que tenho percebido em muitos violões que aparecem aqui para reparos, mesmo de construtores mais famosos, que é a qualidade do acabamento. Não são poucas as vezes que pego instrumentos com vernizes de acabamento semelhante ao que encontramos em fábricas nacionais. Fica a dica: se o violão de autor que você quer comprar e irá pagar um valor considerável, não tem um acabamento no mínimo ótimo, pense bem sobre todo o resto que está escondido dentro do instrumento...


MC - Eu tive oportunidade de assistir o recital da bacharelando pela Udesc, Amanda Andrade, com um violão William Ramos, e pude perceber que, além de tradicional ele também tinha uma ótima projeção (tanto quanto um Sérgio Abreu), e a forma do corpo se aproximava mais do violão R. Buchet, se não me engano. Como chegou nesse padrão?
WR - Assim como na sonoridade, gosto também de uma estética tradicional para meus violões clássicos. Desenvolvi dois ou três violões antes de chegar às minhas linhas definitivas, bem como altura de caixa e ornamentação. O Bouchet está entre os meus preferidos, com uma aparência sóbria, mas um violão de atitude e linhas imponentes.

MC - Você já fabricou algum violão com engenharia mais moderna, do tipo Australiana, com o uso de tampa ou fundo duplo colado com resina, ou treliça, como os luthieres Greg Smallman, Jim Redgate, etc?
WR - Tive a sorte de testar alguns violões de construção mais moderna antes de iniciar qualquer experiência com eles, e isso me desmotivou bastante. Os violões com materiais sintéticos foram os piores, já os com apenas projetos de leque diferenciado (treliça, grade, etc.) têm as suas qualidades, mas ainda assim não me impressionam. Eu também fabrico violões com cordas de aço, logo, preciso utilizar treliça e x-bracing, por isso não estou sendo leviano. Mas é que justamente por saber onde um instrumento pode chegar, é que não vejo como benefício esses recursos em violões clássicos. Seria ótimo se pudéssemos simplesmente somar as qualidades que eles propõem (volume e projeção) ao instrumento, mas infelizmente muito se perde em complexidade de timbre. Não vejo sentido nisso! Um violão tem as suas limitações, e saber conviver com elas e explorá-las da melhor maneira aumenta a intimidade violão/violonista, que é o que deveria ser mais prezado. Vejo menos sentido ainda quando assisto a concertos em que o violonista usa um violão assim, mas continua microfonando-o. Entretanto cada um sabe (ou deveria saber) aonde quer chegar com sua sonoridade, e por isso é ótimo que tenhamos opções e escolas diferenciadas.


MC - Qual foi a sua motivação para se replicar a guitarra romântica Panormo do concertista Luiz Mantovani? Que madeiras foram utilizadas, como se dá a projeção do som desse instrumento, e qual a medida da escala?
WR - Sempre tive as guitarras românticas como instrumentos de som moderado e limitado. Doce e pueril, semelhante ao Período. E de fato, a maioria soa assim, principalmente devido ao projeto encontrado na maioria delas, que não utiliza leque harmônico, apenas barras transversais. Com a Panormo isso não acontece. Ela tem um timbre rico, pronunciado, tão complexo quanto um violão tradicional, apenas com menor projeção. Mas não estou dizendo ‘pouca’ projeção, e sim menor. Ela soa incrivelmente bem. A maior parte dessa qualidade distinta deve-se ao seu projeto que, diferente das demais guitarras, possui leque harmônico. Louis Panormo, de Londres, utilizou uma ideia que José Pagés, de Cádiz no sul da Espanha, já utilizava em 1800 (sim, não foi Antônio de Torres quem inventou o leque harmônico). Não só a estrutura, mas o design das guitarras de Panormo foi fortemente inspirado nas guitarras de Pagés. No caso de Torres, ele apenas utilizou em um instrumento maior uma idéia já existente, que é o que conhecemos hoje por violão tradicional.
A Panormo de Luiz Mantovani foi construída por Simon Ambridge, e serviu de motivação para eu desenvolver meu projeto. Utilizei esta Ambridge e mais uma planta de Panormo para chegar à minha réplica. Ela tem escala de 330 mm, e as madeiras que utilizo são as mesmas da maioria das Panormos: tampo em Abeto, fundo e laterais em Jacarandá Brasileiro, braço em Cedro com escala e cavalete em Ébano.

 
MC - E o teu violão de 10 cordas que hoje está com o concertista Salomão Habib, conte-nos esta história? Este instrumento foi baseado em alguma engenharia, por exemplo, a do exótico Ramirez do Narcizo Yepes?
WR - Como mencionei, chegou um período em que minha mente e mãos clamavam por desafios, e vi que isso só poderia ser alimentado se eu extrapolasse os limites do convencional. A fabricação de violões de 10 cordas (ou Catedral Guitar) foi parte desse processo. Estudar as necessidades de um instrumento assim, bem como as adaptações em cima do projeto tradicional e sua aplicação, foram um aprendizado muito grande para mim. Outra coisa que me motivou foi o estudo do repertório barroco, que no dez cordas pode ser mais bem explorado.
Esse instrumento pode ter mais que uma finalidade com as cordas extras. Ele pode ser afinado para que os bordões tenham ressonância por simpatia e ocasionalmente sejam usados, como era o caso de Yepes. Afinações com baixos graves, como o 10 cordas que está com Salomão Habib. Ou ainda a afinação reentrante, usada por Egberto Gismonti. Para todas essas situações é necessário um tempo de estudo e muitas adaptações na forma de tocar. Para mim, com meu jeito parco de tocar, foi um desafio muito grande executar qualquer coisa num violão desses.
O violão de dez cordas do Habib era um violão de uso meu, que fiz motivado em estudar o repertório barroco. Quando numa apresentação dele em minha cidade pude apresentar o violão a ele, que comprou o instrumento.

 
MC - Quanto tempo se leva pra se fabricar um violão clássico padrão William Ramos e uma réplica, ou uma guitarra romântica?
WR - O tempo de fabricação sempre depende da quantidade de pedidos, já que trabalho sozinho e individualmente em cada instrumento. Atualmente tenho conseguido manter a lista de espera com um prazo de 12 meses, o que ocasionalmente pode diminuir ou aumentar, mas que é sempre previamente estipulado e informado ao cliente no ato da encomenda. Sou muito rígido com prazos de entregas. Também divido meu tempo entre ajustes/reparos e workshops, o que pode influenciar o ritmo de produção em determinado período.

MC - Se você fosse fabricar um violão pra você, como seria?
WR - É difícil definir um violão ideal quando se pode transitar por tantas opções. Isso é um dilema quando o luthier também é músico e vai escolher algo para si. Mas ainda ficaria com um violão com tampo de Abeto, para ter voz firme e pronunciada, fundo e as laterais em madeira mais densa (Jacarandá, Macacaúba, Indian Rosewood, Cocobolo, etc) para um sotaque expressivo e de resposta rápida, braço em Cedro para equilíbrio e favorecimento da ergonomia, e escala em Jacarandá para ter uma pitada a mais de brilho que o Ébano. Claro que tudo isso em um projeto tradicional. Parece metódico demais, não é? E pensar que aí eu só defini 10% do que realmente é um instrumento...


Agradeço ao Luthier William Ramos pela entrevista, compartilhando conosco um pouco do seu conhecimento e pesquisas.

Entrevista realizada por Rede Social. 

Contato com William: wramosluthier@gmail.com, (48)36269833.

3 comentários:

Ariane Angioletti disse...

Muito bom o seu blog!

Unknown disse...

Willian Ramos é excepcional no que faz, seu vasto conhecimento e extrema qualidade nos serviços o deixam tranquilamente entre os melhores lutieres. Parabens Will.

Anônimo disse...

Conhecer uma criança e depois ver o adulto talentoso em que se transformou é muito bom! Adorei a entrevista. Prof.Fátima Barreto de Laguna