sábado, 23 de fevereiro de 2013

ENTREVISTA COM O VIOLONISTA FLÁVIO APRO


O início dos teus estudos foi como a grande maioria dos violonistas, indo pra uma escola de música da sua cidade natal?

Sim, foi em São Paulo aos cinco anos de idade. Eu era uma criança hiperativa e, como gostava muito de ouvir música, minha mãe decidiu comprar um violão por dois motivos - o primeiro para que eu me acalmasse um pouco e a deixasse em paz, e o segundo porque eu era tão ávido por música que sempre pedia, nas datas comemorativas, coleções completas de discos de bandas de rock que eu gostava na época, como Beatles, Queen, etc. De modo que foi uma decisão que resolveu vários problemas ao mesmo tempo :)  Ela também me matriculou num pequeno conservatório no bairro do Tatuapé, do qual saíram, curiosamente, além de mim, outros músicos de renome. Apesar de ser aluno formal, afirmo que minha formação foi autodidata, no sentido de que eu decidi muito cedo aprender violão clássico ao invés de popular e lembro, claramente, ter desenvolvido a leitura musical por associações dos sinais gráficos, ter descoberto sozinho como funcionava a transposição do violão, e ter também descoberto o repertório violonístico - naquela época não havia a internet, eu recorria às coleções de discos dos pais dos meus amigos e a programas na televisão para conhecer as obras, além de também ouvir discos de música clássica em geral. Foi assim, por exemplo, que eu descobri a Chaconne de Bach, numa gravação do original para violino, e imediatamente, sem conhecer as versões para violão, imaginei: “isso dá para tocar no violão e ficaria muito bom...” Esse foi o começo de minha trajetória na música.

E o encontro com a violonista Monina Távora, se deu de que forma? Você ainda utiliza algum conceito da metodologia que ela aplicava?

Foi um divisor de águas na minha formação musical. Eu já tocava violão clássico há muitos anos e tive mestres fantásticos que me deram uma ótima formação. Mas eu ainda sentia que algo estava travado, não sabia exatamente o quê. Meu ídolo do violão era - e continua sendo - o Sérgio Abreu. Eu o procurei quando tinha 16 anos, e fui ao Rio de Janeiro com a única finalidade de conhecê-lo. Perguntava a ele sobre tudo, inclusive sobre Dona Monina. Ele advertiu que ela não costumava aceitar alunos, que era muito reservada, etc., e sugeriu que enviasse uma carta com uma gravação para ver o que acontecia. Qual não foi minha surpresa quando recebi sua resposta, não apenas abrindo as portas para um contato permanente, mas também com uma análise completa e sugestões de mudanças para cada música que enviei na fita cassete. Logo surgiu a oportunidade de viajar ao Uruguai em 1993 e ficar uma semana tendo aulas particulares com ela, aulas estas que costumavam durar a tarde inteira, e alguns dias até tarde da noite. E ela detectou o problema: eu não tinha idéia do que era Interpretação Musical, e foi aí que comecei a aprender e, mais tarde, a me especializar no assunto. Nosso contato perdurou até seu falecimento em 2010, pessoalmente, por telefone, ou pelo envio de gravações. Posso dizer que não só aplico os conceitos da metodologia de Dona Monina, mas cada nota que extraio do violão tem um porquê baseado em sua filosofia musical.

Quando você ingressou na universidade muita coisa mudou no seu estilo de tocar, ou tudo já estava resolvido?

Estudar na USP era o sonho de qualquer adolescente na época, porém as perspectivas de passar no vestibular eram remotas porque minha família passava por uma séria crise financeira. Mas com muito esforço e dedicação, consegui vencer o vestibular e entrei para o curso. Este me deu não apenas uma formação geral e teórica mais adequada e organizada, como gerou oportunidades de participação em eventos externos, tanto no Brasil como no exterior, quando tive a oportunidade de participar do Festival de Kyoto, no Japão. Anos mais tarde, retornei à mesma instituição para realizar uma pesquisa inédita, em nível de doutoramento, sobre as Folias de Espanha.

Como é a sua rotina de estudo?

Meu único critério de estudo é a freqüência diária, mas não há uma rotina fixa, pois isso acarretaria em monotonia, o que seria nocivo ao trabalho de criatividade musical. Entretanto, trabalho sempre em etapas, que são flexíveis e não têm ordem fixa: memorização de novas peças, leitura à primeira vista, técnica pura ou aplicada, manutenção de repertório. Recomendo o mesmo processo aos meus alunos. Quanto à duração, costumo me organizar para dedicar o tempo necessário para resolver os problemas técnicos e musicais do repertório que estou trabalhando. E, devido fato de ser professor universitário e não ter a obrigação de fazer longas turnês, tenho muita liberdade neste sentido.

Noto que sua anatomia da mão direita é um pouco diferenciada, da grande maioria dos violonistas. Como o diferencial da Ida Presti, será o segredo pra um som tão cheio de diferentes cores, clareza, que você consegue extrair do violão?

Não diria que a anatomia seja diferenciada, mas a postura livre e a flexibilidade que aplico ao tocar. Noto que a maioria dos violonistas tem uma preocupação obsessiva em adotar uma determinada escola, com um “shape’ de mão específica, visando eficiência técnica. Na verdade, é o contrário: a eficiência técnica surge quando não há uma postura definida. Vejo essa questão com muita seriedade, pois há inúmeros casos de estudantes de violão que passam vários anos estudando com um professor que é adepto de uma escola X e depois passam a estudar com outro professor pertencente à escola Y. Como, via de regra, esse professores costumam obrigá-los a mudar a técnica, o resultado é a alta incidência de problemas de saúde muscular e motora no mundo do violão clássico. O segredo para o colorido e a clareza no som, para mim, é apenas um: flexibilidade!

Fale-me sobre os concursos de violão e o seu disco de estréia.

Fui vencedor de vários concursos, mas logo percebi que esse caminho não me levaria ao ponto de excelência artística que eu buscava e parei de participar de concursos muito antes da idade limite de 30 anos. Tenho relativamente poucos títulos em meu currículo, mas todos de enorme importância. Os primeiros concursos que participei, entre 1985 e 1990, foram importantes para eu entender qual era o nível do violão no Brasil, mas após essa época eu simplesmente não suportava mais o ambiente pesado entre os concorrentes, e a mistura de adrenalina com terrorismo psicológico que emana desses ambientes.
Meu disco de estréia - PRAELUDIUM - foi uma experiência maravilhosa, que me trouxe um grande reconhecimento no Brasil e um amadurecimento musical intenso. Eu tinha acabado de terminar o curso de graduação na USP e estava muito entusiasmado com as descobertas interpretativas com Dona Monina Távora. Achava que era o momento de arriscar e realmente o trabalho foi ousado. O repertório escolhido foi ambicioso, mas consegui dar conta do recado. A novidade, na época, é que eu fui um dos primeiros violonistas brasileiros a gravar no novo formato de CD - a tecnologia preponderante ainda era a do vinil - e, até onde sei, o primeiro brasileiro a gravar a ‘Chaconne’ de Bach. Embora eu tenha evoluído “anos-luz” desde a gravação deste CD, é um trabalho de que me orgulho até hoje.

E o encontro com a obra pra violão do Francisco Mignone, teve alguma importância na sua maneira de tocar, já que o compositor não era violonista? Fale-me sobre as gravações que você fez dos 12 estudos do F. Mignone?

O CD FLAVIO APRO INTERPRETA MIGNONE foi fruto de um trabalho de dois anos de intensa preparação. A intenção inicial não era gravar os 12 Estudos de Mignone, mas a pesquisa de mestrado sobre essa obra que resultou na famosa dissertação, que hoje é uma forte referência acadêmica na área de Performance Musical. A instituição onde eu desenvolvi a pesquisa, UNESP, havia disponibilizado uma verba para a gravação dos 12 Estudos, mas o processo se burocratizou de forma a inviabilizar o projeto de um CD institucional. Assim, novamente eu assumi um lançamento independente. A tiragem foi mínima, apenas 500 cópias. Mesmo assim, este foi um trabalho que me trouxe um amplo reconhecimento acadêmico e internacional, pois o disco circula muito na internet, até hoje. O selo Tasto, do México, está preparando um relançamento deste CD, que contará com uma tiragem maior e a distribuição internacional.

Hoje que você é mais maduro, te faz pensar que poderia ter feito uma programação de estudo diferente, ou repertório, ou tudo foi perfeito? Hoje o que você aconselharia pra quem está iniciando no violão clássico?

Creio que tudo foi justo e perfeito na minha formação musical, na medida em que os acertos permanecem até hoje comigo e os erros me trouxeram a reflexão e a experiência que hoje transmito aos meus alunos. Meu conselho para os estudantes é reforçar o que disse na questão sobre a postura de mão direita: evitar o radicalismo das técnicas. E se eu pudesse fazer algo diferente? Teria participado de menos concursos de violão... :)

Sua mais recente gravação "O Violão Brasileiro" também terá lançamento em vinil, conforme seu blog, por causa da boa aceitação e todo o romantismo dos LPs. Eu, por exemplo, gostaria de ter seu disco "Praeludium" em LP! Pode comentar a respeito?

Como relatei, minha infância foi cercada de boa música, e na década de 70, o único formato era o vinil. Assim, em primeiro lugar, o lançamento de um vinil funciona, para mim, como a realização de um sonho. Depois, estou percebendo o gradual retorno ao formato Long-Play, especialmente na Europa. O vinil é fundamentalmente uma experiência tátil, visual e auditiva. Manusear o disco, colocá-lo no toca-discos, apreciar a arte estampada em tamanho grande, ler o encarte e a contracapa, trocar de lado e ainda ouvir um som que possui vantagens cientificamente comprovadas sobre o som digital, faz com que a experiência de ouvir o Long-Play seja um privilégio.

Quais violões você utiliza? São os mesmos nas gravações? Tem algum mais preferido, ou que ainda não adquiriu?

Sou relativamente uma pessoa modesta e de quase nenhum hábito consumista, mas se tem algo de que não abro mão é comprar ótimos instrumentos. Minha coleção é pequena, mas de qualidade absoluta: dois violões construídos por Sérgio Abreu (2010, 2013) de abeto; um Lineu Bravo (2006) de cedro; um David Hirschy (1979) de abeto completado pelo Sérgio Abreu; e um Hermann Hauser III de abeto que será entregue em 2014. Um violonista famoso costuma dizer que jamais faria um investimento num Hermann Hauser I, que é o instrumento mais caro e raro do mercado de violões. Pois eu compraria sem nenhum arrependimento. O motivo? Porque um excelente violão soa maravilhoso nas mãos de quem conhece o som, e isso é algo que eu sei fazer muito bem.

Basicamente todos os meus discos têm o som de instrumento feito pelo Sérgio Abreu: o PRAELUDIUM foi gravado com um S. Abreu; o MIGNONE foi também com S. Abreu; e meu próximo CD, NOCTURNE, será gravado com o Hirschy-Abreu. A exceção fica por conta do VIOLÃO BRASILEIRO, que foi gravado com o Lineu Bravo.

E os projetos pra 2013, como estão?

2013 está sendo um ano muito produtivo. Além da conclusão do CD O VIOLÃO BRASILEIRO e o relançamento dos 12 ESTUDOS DE MIGNONE, estou preparando o CD NOCTURNE, que é uma proposta musical ousada em termos de mercado de violão, pois será um disco composto de obras lentas e meditativas, em homenagem à memória de Dona Monina Távora. No que se refere às apresentações, acabo de retornar de uma exitosa viagem ao México, onde lecionei, dei concertos e gravei para rádio e televisão, com transmissões em rede nacional; estou de malas prontas para apresentações nos Estados Unidos; e no segundo semestre farei uma turnê pela Europa para apresentações e aulas na Alemanha, Polônia e Croácia. No âmbito acadêmico, participarei de alguns colóquios nacionais e estou me preparando para um pós-doutoramento no exterior - mas ainda não decidi o destino. E como produtor, estou trabalhando em parcerias para a promoção de alguns eventos internacionais, como a vinda ao Brasil da Orquestra de Violões Niibori do Japão e a etapa sul-americana do Concurso Internacional Johann Sebastian Bach, em parceria com Alemanha e Japão.

Agradeço a gentileza por esta entrevista, e espero que suas interpretações sejam sempre bem capturadas em gravações, satisfazendo assim, nossos ouvidos ávidos pelo violão bem tocado, pois você é um grande personagem da história do Violão do Brasil!

(Entrevista concedida a Marco Cardozo em 23-Fev-2013, via e-mail).