quarta-feira, 9 de maio de 2018

Entrevista com o luthier Sérgio Abreu de 1996...

Sérgio Abreu

Entrevista publicada na edição no. 20 - Nov/Dez 1996 com o título “Relembrando Sérgio e Eduardo Abreu” por Gilson Antunes.

Sérgio formou com seu irmão Eduardo, em meados dos anos 60 até 1975 o maior duo de violões de sua época e até hoje a lenda sobrevive. É de se lamentar, principalmente para a nova geração de violonistas, que os três discos do duo estejam fora de catálogo, e mesmo assim eles dizem muito pouco da grandeza que eles representaram (há gravações ao vivo e programas de rádio que demonstram claramente o quão fenomenal eles eram). Nessa entrevista exclusiva concedida a Gilson Antunes, Sérgio Abreu relembra fatos e curiosidades a respeito de toda a sua carreira. Sérgio nasceu em 1948 e Eduardo em 1949, ambos no Rio de Janeiro. Estudaram primeiramente com o avô, Antonio Rebello, prosseguindo com Monina Távora, uma discípula de Segóvia. Em 1967 Sérgio foi o mais jovem violonista até então a ganhar o mais importante concurso de violão do mundo, o da ORTF, em Paris. No ano seguinte Eduardo pegaria segundo lugar no mesmo concurso, numa decisão até hoje polêmica. Em 1975, no auge da carreira, Eduardo decide parar de tocar e o duo se desfaz. Sérgio continua com a carreira solo até 1982, quando também decide parar para se dedicar à lutheria, tornando-se então o mais famoso luthier brasileiro da atualidade.


Gilson Antunes - Quando e por qual motivo você e seu irmão Eduardo se iniciaram no violão?
Sergio Abreu - Por volta dos 10 anos de idade. O motivo é que em casa todo mundo tocava violão. Meu avô Antonio Rebello era professor, meu pai era violonista, então foi uma coisa que veio de casa.

GA - Quando veio o primeiro contato com sua professora Monina Távora?
SA - Meu avô a conheceu quando ela deu um recital aqui no Rio de Janeiro nos anos 50. Ela morava aqui na cidade, seu marido era um cientista brasileiro, então ela morou por aqui uns 30 anos mais ou menos. Meu avô falava com ela eventualmente. Um ano após eu e meu irmão nos iniciarmos no violão meu avô telefonou para ela perguntando se ela não gostaria de nos ouvir. Ela foi bastante receptiva, nos recebeu lá e aí nós começamos a estudar com ela. Nós tínhamos aulas de 15 em 15 dias.

GA - E como eram essas aulas?
SA - Eram em geral nos finais de semana, para não interferir em nossa rotina no colégio. Nós tínhamos hora para chegar, mas a aulas durava três, quatro horas, a gente ficava tocando, ela nos mostrava muitas coisas...

GA - E eram aulas individuais?
SA - Sim, nós tínhamos aulas individuais, primeiro tocava um, depois tocava outro. Aos poucos ela foi-nos encorajando a fazer duo, nem com intenção de desenvolver muito alguma coisa, mas ela achava que era uma excelente disciplina a música de câmara. Mais tarde ela também nos encorajaria a fazer música com outros instrumentos.

GA - E como surgiu o duo? Foi a partir dessa sugestão?
SA - Não, meu avô encorajava muito seus alunos a fazer duos, trios, etc. Então quando começamos nós fazíamos trio com nosso avô, ou duo, então já desde o início fazíamos coisas juntos, mas em pequenas proporções. Nossa estréia oficial foi aqui no Rio de Janeiro no Auditório da Associação Brasileira de Imprensa em 1963.

GA - E vocês deram logo um recital na Argentina...
SA - A Monina acreditava em a gente trabalhar o ano todo e fazer uma apresentação desse trabalho. Então nos fizemos uma apresentação no Rio no ano seguinte, e no terceiro ano tocamos em Buenos Aires.

GA - Agora, com relação ao Concurso de Paris, quais lembranças você possui dele com relação ao repertório, concorrentes, etc.?
SA - Eu não tenho nenhuma lembrança em especial. O Concurso foi em 1967, eu lembro que foi uma das raras ocasiões em que eu estudei algumas obras com data marcada para tocar, uma coisa que eu nunca gostei de fazer. No repertório tinha as Folias de Espanha do Ponce, que eu toquei de livre escolha, a Tarantella do Tedesco, uma coisa do Grau, eu não me lembro realmente, foi há 30 anos atrás...

GA - E o fato do Turíbio Santos ter ganho em 1965 foi uma coisa que te encorajou a fazer, ou foi uma sugestão da Monina Távora?
SA - A Monina na verdade não estava muito entusiasmada com esse concurso, mas achou que tudo bem, era uma oportunidade de sair para fora, mas meu pai foi quem achou que era uma ideia melhor. Realmente a vitória do Turíbio teve uma repercussão enorme aqui e o fato de eu ter me candidatado e classificado também despertou um interesse da imprensa. Certamente
ajudou ter o Turíbio quando eu fui para lá, ele me arrumou um hotel pra ficar, ele foi assistir, ou
seja, foi como se eu não estivesse sozinho.

GA - E com relação ao seu irmão, Eduardo, não sei se você pode responder, mas ele foi porque você tinha ido no ano anterior, ou ele mesmo quis fazer?
SA - Ele não queria ir fazer, meu pai foi quem achou que ele deveria ir. Foi até um ano conturbado, tinha uma baderna em Paris, o concurso foi transferido, ia ser numa época e foi transferido pra outra...



GA - Sobre isso eu gostaria que você falasse a respeito de concursos em geral, sua opinião pessoal.
SA - Concurso virou um mal necessário hoje em dia. Há 30 anos atrás era muito fácil você se apresentar em qualquer lugar, não tinha o tumulto e dificuldades que temos hoje. O concurso é uma maneira das pessoas se apresentarem, tanto aqui quanto no exterior, que de outra maneira seria impossível. Eu não gosto muito da ideia do concurso em si, mas tem sua função e virou uma coisa necessária. No violão não dá pra fazer isso mas no piano eu já sei que há pessoas cujo meio de vida é ganhar concursos. Veja bem, são pessoas muito boas que não chegam a ganhar primeiros prêmios, mas ganham segundo, terceiro e vão fazendo todos os anos (risos). Profissão:ocupante de concursos, ganhadores de segundos e terceiros prêmios. Eles vivem disso e até bastante bem. E são muitos concursos, o cara faz vinte a trinta por ano (mais risos).

GA - Agora, com relação aos discos que vocês gravaram. Como surgiu o primeiro disco, e se há algum
motivo especial por vocês terem gravado tão pouco?
SA - O primeiro disco foi uma coisa totalmente não planejada. Nós estávamos planejando fazer um disco no ano posterior ao que gravamos o primeiro disco, pela CBS, com o Roberto de Regina, em 1968. Fomos à Inglaterra nesse ano e fizemos uma apresentação no Wigmore Hall e o pessoal da DECCA por algum motivo foi assistir e nos convidou para gravar um disco. Nós contactamos a CBS do Rio que também tinha enviado um representante, e ele nos aconselhou a aceitar sem nos causar nenhum obstáculo, desde que fosse apenas um disco. Foi uma coisa meio improvisada, eu não fiquei muito satisfeito com o resultado, mas foi uma experiência. Não fui eu quem editou o disco e eu gostaria de ter feito isso. Eu gostaria até de eventualmente se existirem essas fitas, ir lá e refazer, mas acho que não. As fitas master não estão comigo, estão na Inglaterra. Nós gravamos no ano seguinte um disco em duo para a CBS e depois um disco com 2 concertos (Santórsola e
Tedesco), aí o relacionamento entre eu e meu irmão já estava ficando difícil, então resolvemos parar. E gravar disco era meio uma chateação... a ideia original do terceiro disco era gravarmos o Madrigal do Rodrigo e o Tedesco. Quando o Rodrigo nos enviou o concerto já estava meio em cima da hora, nós tínhamos dúvidas sobre algumas coisas e resolvemos deixar para a próxima, mas a próxima nunca aconteceu. E o Santórsola nós já tínhamos no dedo.

GA - Houve algum motivo em particular que terminou com o duo, ou foi uma decisão de comum acordo?
SA - Não houve um motivo somente. Se fosse apenas um motivo nós tentaríamos contornar, foram quinhentos motivos para dizer assim... Meu irmão não estava a fim de continuar tocando, então acabou, mas era uma coisa mais ou menos inevitável.

GA - Vocês tinham ideia do nível em que vocês estavam nos anos 60?
SA - A gente tocava, não comparava muito, a gente comparava com a ideia que nós fazíamos. Apesar das dificuldades eu acho que os dois últimos anos do duo foram mais ou menos tranquilos, bastante seguros, a parte de tocar era a única que não tinha problemas.

GA - Uma curiosidade: vocês estudaram quanto tempo com a Monina?
SA - Uns 8 anos seguidos e uns 2 esparsos, depois ela foi para a Argentina. Eu não a vejo há uns 15 anos, mas a gente se escreve o tempo todo, fala por telefone e infelizmente ela teve uns problemas de saúde.
 


GA - Eu gostaria que você falasse um pouco a respeito de mais duas formações camerísticas que você fez, com o soprano Maria Lúcia Godoy e com o flautista Norton Morozowicz. 
SA - A Maria Lúcia eu conheço de passagem há muitos anos. Quando tocamos o Tedesco em Londres ela cantou as Bachianas no mesmo programa. Não sei como foi a ideia, mas nós nos encontramos na casa
de um amigo em comum, ele tinha um violão lá e alguma música e daí nós começamos aos poucos desenvolver, houve algum convite para tocar, gravar e fazer uma turnê pela Europa, mas foi uma coisa esporádica. Com relação ao Norton, eu me encontrei com ele uma vez que eu toquei com a OSB, ele me disse que gostaria de tocar com violão. A gente também fez alguma coisa juntos, tocamos durante 2 anos no máximo, uma coisa mais ou menos rápida. Mas foi legal, eu já estava pensando em parar nessa época, e ele é um excelente músico.

GA - Com relação a preparação de seu disco solo, de Sor e Paganini, parece que ficou 2 anos fazendo a edição, como foi?
SA - Foi um disco muito complicado. Meu irmão tinha parado de tocar, nós ainda estávamos com um contrato com a CBS e estávamos devendo há muito tempo um disco pra eles. Eu fui experimentar os estúdios deles em Nova York e não gostei muito, até que eu achei uma igreja na cidade. Eu fui lá, gravei, a Sonata do Paganini eu já tinha no dedo, eu tocava muito, e o Sor é uma música que não se prestava muito em concerto, mas eu gostava muito. Eu sei que eu gravei os dois lá e depois eu descobri que a igreja tem uma bela acústica, mas possui muito externo e eu usei um violão de um amigo que eu tinha conhecido poucos anos antes. Com o tempo, quanto mais eu ouvia menos eu gostava, então resolvi gravar alguns meses mais tarde em Londres, num salão. Então acabou ficando uma coisa meio misturada, duas gravações diferentes, com violões diferentes. Para o disco sair ele demorou bastante, eu comecei a gravar em 1976, uma parte no meio do ano e outra no final, e ele foi lançado em 1982 pela Ariola, com uma tiragem apenas.

GA - Quando você construiu seu primeiro violão e por quê?
SA - Eu estou interessado em construir violões desde que eu toquei no Hauser da Monina Távora, ele era tão superior a qualquer outra coisa que eu conhecia que aquilo me despertou a atenção. Pouco depois o violão teve algum problema e ela pediu para eu levar o instrumento para o Silvestre do Bandolim de Ouro fazer um reparo. Eu aproveitei e fiz o desenho do violão e coloquei a luz, tirei a medida dos leques, ou seja, o que eu podia fazer eu fiz e pedi ao Silvestre para fazer um violão baseado nesse desenho e depois eu emprestei esse desenho para várias pessoas. Então, desde essa época eu me interessei por construção, sempre que eu viajava eu entrava em contato com luthiers. Eu demorei bastante por ter um certo receio que fosse uma coisa perigosa, tinha medo
de cortar um dedo ou coisa assim e eventualmente acho que eu disse “dane-se, eu estou realmente a fim” e quando meu irmão parou de tocar eu vi que era a hora de mexer com isso, eu já vinha comprando madeira para envelhecer e dar para algum luthier construir, fiz uma pequena oficina em casa, parte no corredor e parte no quarto de empregada e quebrava um galho. Fui começando a trabalhar e preparar um violão nisso aí. Quando o violão ficou pronto eu não me lembro, mas eu sei que eu saí em turnê e levei ele comigo, possivelmente em 1979. Eu nunca cheguei a dar um recital com um instrumento que eu mesmo construí.

GA - Eu li na revista Violões e Mestres de 1964 que seu avô tinha construído um violão.
SA - Ele construiu alguns violões sozinho numa pequena oficina que ele montou em casa e outros , dois ou três com o Isaías Sávio, que também mexeu com construção de violões. Eu não sei onde estão esses violões, eles não possuem rótulo e será quase impossível identificá-los.

GA - Com quem você aprendeu o inicial de lutheria?
SA - As bases foram com duas pessoas, Thomas Humphrey de Nova York - eu fiquei dois meses lá por conta disso - e George Lowe, da Inglaterra, que me ajudou muito em técnicas de construção em geral.

GA - O que você buscava com seus violões, um som parecido com aquele do Hauser?
SA - Eu comecei tentando imitar o Hauser e obviamente ele não soava como o Hauser e eu tentava entender o por quê disso. Você então percebe que começa a trabalhar do início e tem que ser do início mesmo, não dá prá queimar etapa. Realmente eu fui aprendendo aos poucos. Depois eu fui fazendo um trabalho na Giannini, o modelo C7, foram quase 500 violões e isso foi um laboratório excelente. Eu ia uma ou duas vezes por mês a São Paulo supervisionar esses violões , eu fazia os tampos aqui e levava pra lá. Então, o violão era formado por tampos que eu fazia, eles montavam e eu terminava o instrumento, via se estava tudo O.k., ajustava a pestana e regulava o rastilho.


GA - Quanto tempo você ficou na Giannini?
SA - Fiquei 7 anos, fizemos 496 violões. Eu queria chegar nos 500, mas as madeiras acabaram (risos).

GA - Atualmente você já construiu quantos violões seus?
SA - Eu estou no 347. A fila de espera está mais ou menos de 3 anos. Há um tipo básico de violão mas eu uso madeiras diferentes, o jacarandá da Bahia ou Jacarandá da Índia. Eu estou sempre testando alguma coisa, eu nunca estive muito satisfeito com o resultado dos meus violões, aos poucos, eu acho que vou tentando chegar mais próximo do que eu gostaria que fosse. Com certeza ainda não atingiu o que eu gostaria que fosse.

GA - Ainda é mais ou menos aquilo de criar um som próximo ao do Hauser?
SA - Tentativa de tentar copiar o Hauser eu fiz poucos instrumentos. Logo eu cheguei à conclusão de que você não copia um instrumento velho, você copia mas sai com um som novo, então eu tenho que julgar o meu trabalho em termos do que eu estou fazendo e aí eu vou realmente procurando meu caminho, que é mais ou menos naquela direção, mas com meu estilo pessoal. Há também uma segunda dificuldade, se eu faria um instrumento que eu gostaria de tocar ou que outras pessoas gostariam de tocar, pois meu estilo é diferente, então são várias complicações, e ainda não há aquela resposta de um instrumento ideal. Mas de qualquer maneira eu ainda estou procurando uma coisa que me deixe mais satisfeito. Eu acho que eu já tenho um controle com meus instrumentos, eles não variam muito de nível, são mais ou menos regulares, e isso já é uma conquista e eu estou procurando um instrumento mais musical, com volume e equilíbrio, eu quero que ele fique mais maleável, com mais colorido de som e resposta. São questões de sutileza.



GA - Com quais violões vocês tocaram durante a carreira?
SA - Tocamos no Hauser de 1930 e Santos Hernandez de 1920 da Monina, que ela mais ou menos me deu depois. Quando começou a ficar difícil viajar com eles por causa do clima - nos EUA, por exemplo - nós passamos a tocar com dois Rubios por 2 ou 3 anos. Meu irmão continuou com o Rubio, ele não mudou mais, depois eu comprei outro Hauser de 1952. Ocasionalmente eu comprei outros violões, Romanillos, Fisher, Friedrich e outros menos conhecidos, mas quando eu estava sozinho eu praticamente fiquei só no Hauser de 1952.

GA - Quais estilos de música e compositores você escuta para relaxar?
SA - Eu ouço de tudo com relação à música erudita, desde renasçença até compositores tradicionais do século XX. Eu gosto de ópera e ouço pouco violão, por motivos óbvios (risos). Eu não gosto da música ultra-moderna ou serialista, de resto eu ouço tudo que tenha um significado especial para mim.

GA - Inclusive você nunca tocou nada ultra-vanguarda.
SA - Não. Era ultra-vanguarda para o público violonístico da época (anos 60) eu tocar uma Sonata do
Santórsola, mas hoje em dia aquilo é até um negócio conservador. Mas coisa assim ultra-moderna não, eu continuo não gostando de coisas assim que maltratem o violão. Eu acho que essas coisas soam melhor em outros instrumentos, o violão tem de especial a sonoridade e a maleabilidade de som. Se não usar isso no violão é mais fácil tocar um instrumento de teclado, que se presta mais com notas tocadas com rapidez, soa melhor e é mais fácil de fazer.

GA - Quando você decidiu parar de tocar?
SA - Inicialmente minha intenção era tirar umas férias de um ano. Depois elas se prolongaram por dois, depois três (risos), e aí eu comecei a desconfiar que tinha terminado mesmo, não tinha a menor vontade de continuar. A parte de tocar era a mais fácil, digamos assim, agora a xaropada de enfrentar aeroportos, a parte de organização com empresários e, pior de tudo, no meio de uma turnê você está cansado, terminou de tocar e ainda tem que enfrentar uma recepção que você não está nem um pouco a fim, onde só vão pessoas que você não conhece, essa parte aí eu realmente não tenho o menor prazer, é pra pessoas que gostam disso, que acham isso a melhor parte, mas pra quem não gosta disso não dá. Durante alguns anos dá pra aguentar, mas depois de 10 anos se você não gosta disso e não aprendeu a gostar aí fica difícil.

GA - Isso foi o principal motivo?
SA - Foi um motivo bem forte. A gente logo descobriu que a gente ficava estudando o tempo todo, se a gente pudesse inventar um esquema de ficar estudando e dar uns seis ou sete recitais por ano e conseguisse viver disso nós estaríamos tocando até hoje.

GA - O que seu irmão está fazendo atualmente?
SA - Ele terminou há dois anos o doutorado em eletrônica pela Universidade de Santa Barbara, nos Estados Unidos. Eu sei que ele se mudou para a Pensilvânia e não me disse o que anda fazendo e eu também não perguntei (risos). A gente de vez em quando se fala, mas só amenidades. Ele levou o violão Fischer dele, ele sempre teve muita facilidade pra tocar, mesmo passado esse tempo todo, quando ele vinha aqui pegar um violão, soava em plena forma, você não notava a menor diferença, ele pegava o violão sem ter tocado meses e meses, e estava sempre em forma. Comigo era diferente, demorava alguns dias para eu voltar ao normal.

GA - A última vez que você viu ele dedilhando foi quando?
SA - Antes dele ir, há 6 anos atrás. Soava como sempre soou, não tinha a menor diferença...

Gilson Antunes, 24 anos, é concertista, pesquisador e professor.

domingo, 25 de fevereiro de 2018

Recordando um grande Luthier Brasileiro...

 

Entrevista: Roberto Gomes
por Alvaro Henrique

Roberto Gomes, espírito cigano, consciência ecológica, senso crítico e, principalmente, um grande luthier. Roberto Gomes decidiu se aposentar a poucos meses, após construir mais de duzentos violões e de ter instrumentos em vários estados brasileiros, Japão, Nova Zelândia, EUA, e outros países. Nessa longa entrevista tentamos mostrar a trajetória desse construtor de violões desde seu contato com o instrumento até sua aposentadoria.

Alvaro Henrique: Gostaria de começar falando sobre sua vida antes de se tornar o luthier Roberto Gomes. Como e quando começou seu interesse por música e, mais especificamente, pelo violão?
Roberto Gomes: No Natal de 1971 ganhei meu primeiro violão, que era um modelo folk da Gianinni, uma bela porcaria, mas lindo e na época gostava de tocar Beatles, Stones etc. mas também já gostava dos clássicos, Villa-Lobos, Bach, Beethoven, etc. Antes de ganhar este violão tinha um Di Giorgio emprestado por um amigo que me ensinava algumas músicas, então o violão foi de cara meu primeiro instrumento musical. Anos mais tarde flertei com o piano e a viola de arco.

A. H.: E como foi sua história como violonista? Aonde você estudou? Você fez curso em alguma universidade ou conservatório?
R. G.: Também nesta época tive aulas na Academia do Prof. Antero Martins que me deu uma noção inicial de música, de violão e, garotão, queria mesmo era tocar rock, jazz e toquei numa banda de baile chamada Instante 1. Nunca fiz uma universidade tradicional, mas a Universidade da Vida que é a grande escola prática mas, fiz cursos breves e aulas particulares. Em 1975, morando em Salvador - BA estudei durante um ano no então Instituto de Música da PUCBa. Paralelamente a isso trabalhei com o grande Walter Smetak na UFBa onde tínhamos um sexteto de violões microtonais, foi uma experiência incrível! Em 1977 toquei violão e guitarra com o Eduardo Dusek e fizemos shows no Rio e em São Paulo e, apesar do dinheiro ser bem fraco, nos divertíamos muito, cercados de tietes. E aí em 1978/79 morei em Madrid onde consegui ter aulas com D. Áureo Herrero que tinha sido aluno do Segóvia na década de 30. D. Áureo era bem velhinho na época e consegui ter aulas com ele graças ao Marcus Llerena, que era seu aluno dileto, e as aulas com D. Áureo eram ótimas pois ele me ensinou, além do violão, Música mesmo, tinha que solfejar nas claves de Sol, Dó e Fá! E quando voltei ao Brasil em meados de 79 tive algumas aulas com o Henrique Pinto que é um excelente pedagogo, um dos ícones do violão erudito brasileiro.


A. H.: E após estudos em São Paulo, Salvador, Madri, como você avalia o violonista/concertista Roberto Gomes?
R. G.: Olha, nunca fui um virtuoso mas tocava bem peças medianas e me orgulho da minha leitura à primeira vista que é boa até hoje, apesar de tecnicamente estar bem fora de forma. Fiz alguns recitais até com um alaúde, que foi o primeiro instrumento que fiz, apesar de ser um kit. Sempre gostei de música antiga, os espanhóis, Dowland e tal e é outra coisa tocar este tipo de repertório numa cópia de instrumento da época, outra coisa. Quando em 1981 fui morar em São João del Rey, passei a lecionar no Conservatório daquela cidade mineira e durante uns 4 anos fiz muita música de câmara, pois havia uma pequena Camerata lá que não era de todo ruim, então os Concertos em Ré e Lá do Vivaldi eram peças importantes no repertório e gostava também de fazer o contínuo com alaúde nos "Concerti Grosso" de Häendel.

A. H.: E quando começou o interesse pela luteria?
R. G.: Na Bahia trabalhando com o Smetak, grande ser iluminado, que fez mais de 120 instrumentos originais, e também ia muito na Casa Del Vecchio em São Paulo onde via os empregados trabalhando e ficava fascinado com tudo, o cheiro das madeiras, colas e vernizes. Mas foi morando em Madrid que o bicho da luteria me picou pois conheci as feras da Escuela de Madrid, mas fiquei amigo mesmo do Vicente Camacho que fora aprendiz do Modesto Borreguero, que por seu lado trabalhou com o Manuel Ramirez e como tinha que tocar no metrô para incrementar a bufunfa do mês, acabei comprando um violão de corda de aço, um Epiphone bem vagabundo, no qual tirei o fundo, aparei as laterais para torná-lo menos profundo já que os baixos predominavam e o resultado ficou bem interessante.

A. H.: Como foi sua formação para se tornar luthier?
R. G.: Autodidata e tinha um único livro sobre luteria do violão, o do Irving Sloane que era limitado, mas ajudou muito. Claro que os contatos com luthiers profissionais na Espanha também ajudaram e no começo tive contato com o Suguiyama que me vendeu algumas madeiras pois na época não se encontrava aqui madeiras importadas e era uma dificuldade para comprá-las no exterior, mas mesmo assim, não fui aprendiz de ninguém a não ser de mim mesmo, praticando a grande escola do erro e do acerto, então aprendi a luteria ao longo do trabalho e talvez seja esta uma das razões em que me preocupei em transmitir conhecimento ensinando o ofício.



A. H.: A partir de quando o luthier Roberto Gomes começou a ficar mais famoso que o violonista Roberto Gomes?
R. G.: (Risos) O violonista Roberto Gomes nunca foi famoso, talvez o compositor viesse a ser "famoso" pois, de 1978 a 1983, 84 compus algumas coisinhas interessantes e adorava fazer arranjos para tocar com a Camerata do Conservatório de S.J. del Rey. A vida do violonista erudito é solitária por natureza e tocar com outros sempre me foi prazeroso, com flauta, violino, trios, quartetos, etc. Já o luthier que trabalha seriamente e mostra resultados, qualidade, naturalmente acaba se destacando.

A. H.: Como era seu trabalho antes das suas oficinas de São João del Rey? Aonde você trabalhava?
R. G.: Apesar de ser paulistano saí de SP com 18 anos e nunca mais morei lá por grandes períodos, não gosto de cidades grandes, ainda mais as brasileiras que só foram piorando na qualidade de vida, então foram 5 anos na Bahia, 1 em São Lourenço - MG, 1 na Espanha, 1 no Rio, 14 em Minas, 2 nos EUA, um ano e meio em São Luiz do Maranhão e 6 em Santa Catarina! Do jeito que ia acabaria comprando um caminhãozinho para fazer um "Luthiermóvel"! Em 1982 fiz aquele alaúde a partir de um kit inglês e em 1984 vendi meu José Ramirez 1980 Clase 1a que mais o alaúde me deram US$ 2.000,00 e com essa grana comprei algumas máquinas usadas, ferramentas, madeiras e aluguei... um ex consultório de dentista para montar o primeiro "ateliêzinho" mas, nem um ano depois, mudei-me para uma casa no subúrbio da cidade que tinha um galpão nos fundos onde instalei-me bem mais a contento e, posteriormente, a sala da casa virou o atelier e o galpão depósito para as madeiras e máquinas. Fiquei nesta propriedade por uns 10 anos.

A. H.: E como foi o projeto das oficinas de luteria de São João del Rey? Como surgiu? Como se deu o processo? Hoje, quais frutos você vê que aquele trabalho deram?
R. G.: Luthier de Terceiro Mundo, em geral, é duro. Dizia-se em Madrid em 1920 que um luthier de guitarras não morria num hospital público pois não tinha dinheiro para pegar o ônibus para chegar lá!!! Em 1988 as duas faculdades particulares locais foram integradas para formarem uma fundação universitária federal, então aproveitei a oportunidade e fui sugerir ao novo reitor que eles montassem uma oficina onde eu pudesse usar boas máquinas e em troca faria reparos nos instrumentos das orquestras locais. Na época o Rogério Godoy era pró-reitor e, pessoa culta e sensível que é, sugeriu que montássemos uma oficina/escola, ideia que achei muito interessante já que também seria remunerado (ainda que + ou -) e sem dúvida engordaria os parcos lucros que tinha com meus violões. Também na época o secretário-geral do MinC era um mineiro, o Ângelo Oswaldo, e mandamos um dossiê sobre meu trabalho e parece que o pessoal lá do MinC ficou entusiasmado com o projeto e em menos de um ano de trâmites "burrocráticos" foi liberado US$50.000,00 para o projeto e mais quase um ano para reformar uma área de 150m2 num dos campus da Universidade, aquisição do maquinário e ferramental mais as madeiras. Eu nunca tinha trabalhado a fundo com a coisa pública e fiquei estarrecido com a lentidão da "burrocracia" e a ineficiência dos funcionários, cheguei a me arrepender de ter começado tudo aquilo, mas quase que estóricamente, aguentei e em Março de 1989 iniciava assim o Curso de Luteria do Violão, com uma turma de 8 alunos, sendo que 1 aluna. Tinha 2 assistentes, o Benigno de Paula e o José João do Nascimento, este último havia feito o curso de luteria de violinos da FUNARTE em Quintino no Rio e os primeiros meses de aula começaram bem apesar da ciumeira que a Oficina/Escola de Luteria do Violão gerou na Universidade. Éramos uma novidade e a mídia local e até nacional vinha nos entrevistar deixando os professores de Psicologia, Administração, Economia, etc. se mordendo de inveja!!! Quanto a frutos não sei o que deram pois, como disse, perdi o contato mas, pelo menos hoje as pessoas de lá não mais confundem luteria com loteria!!!


A. H.: Por quê seu trabalho em São João del Rey acabou?
R. G.: O MinC bancou a instalação do projeto mas era a Fundação Banco do Brasil que pagaria nossos salários e aí entrou aquele merda do Collor que castrou qualquer atividade cultural bancada pelo Estado, inclusive nossa escola. Fiquei sem receber durante 3 meses mas mesmo assim dei aulas para os alunos em consideração aos próprios, já que tinha gente que havia se mudado para lá para estudar e quando vi que estava uma politicagem nojenta pulei fora e fui cuidar da minha vida, dos meus violões. Os caras eram maquiavélicos pois acabaram pegando o José João que, por um salário bem menor, foi encarregado de tocar o curso, mas o pior é que o cara não havia feito ainda nenhum violão e fez alguns violinos mais ou menos. Fiquei desgostoso com o mesmo pois eu o havia selecionado e o cara virou a casaca e, essas e outras, acabei nunca mais voltando lá. Anos depois soube que o cara havia morrido de câncer. Não mexam comigo! (risos)

A. H.: Com o fim dessa etapa, como passou a ser seu trabalho? Que modelos você construía? Aonde era sua oficina?
R. G.: Fiquei em São João del Rey até começos de 1996. Na época eu construía uns 8 tipos de violões e similares como a Vihuela e a Guitarra Romântica, 7, 8 e 10 cordas, Fundo Duplo, viola, etc. Desde 1992, em comemoração ao centenário de morte de D. Antônio de Torres Jurado, comecei a fazer réplicas de violões deste grande mestre espanhol e curiosamente foi um dos meus modelos de maior sucesso tanto que o Shiro Arai (maior negociantes de violões clássicos de qualidade do Japão) ficou encantado com um que viu com um cliente meu que estava estudando na Europa e começou a me encomendar regularmente este modelo. Já nesta época achava que o design do violão clássico tradicional era limitado para se conseguir uma maior amplitude de som e com algumas variantes este sistema não tinha futuro, só passado glorioso. Quebrando a cabeça e achando que por mais que se conseguisse uma estrutura de tampo que gerasse potência, esta ainda seria limitada então passei a investir em vibrações simpáticas que o Ramirez (Camera) e o Contreras (Doble Tapa) já estavam fazendo algo interessante neste sentido e, comecei a fazer um modelo ao qual chamei de Fundo Duplo que consistia em um segundo tampo perto do fundo e este tampo vibrava mais solto e simpaticamente com o tampo externo buscando favorecer as frequências fracas do violão tais como Eb, Bb, F, C. Fiz uns 12, 15 violões assim mas a quase infinita possibilidades de combinações me levou a parar já que como toda pesquisa há muito investimento (madeiras/tempo) e, em geral, os resultados almejados são obtidos lentamente, se bem que se aprende muito, mas muito mesmo, pois a Acústica é a área da Física menos estudada e lidamos com materiais (madeiras) inconstantes de uma peça a outra e somente muitos e muitos anos de experiência vc sabe o que está buscando e como chegar lá, mas, ainda assim, não sabe tudo, ninguém sabe tudo. Era extremamente cacete para mim ficar fazendo a mesma coisa sempre.

A. H.: Em 2000, seu trabalho foi reconhecido pela GAL (Guild of American Luthier), com a publicação de artigos de sua autoria e artigos de outrem falando da sua obra. Como você se sentiu nesse período? Como isso refletiu no seu trabalho?
R. G.: José Romanillos e Roberto Gomes. Não foi em 2000, mas em 1992, quando participei de uma convenção do GAL em Vermillion, SD - EUA e fiz uma pequena palestra sobre madeiras alternativas brasileiras e a partir daí tornei-me membro do Guild, sendo palestrante convidado também na convenção de 1995 onde conheci o Romanillos, que era o convidado de honra da convenção e, naturalmente, artigos e entrevistas aconteceram. Os caras ficaram impressionados que uma pessoa do Brasil fosse um luthier de alto nível, falando um inglês fluente e com grande conhecimento de madeiras brasileiras ainda mais que naquele ano começara o embargo internacional ao jacarandá da Bahia (Dalbergia nigra). A década de 90 foi de ouro para a luteria do violão erudito, a classical guitar, nunca vendi tanto e muitos violões foram para fora do país cobrando preços de 3,5 a 5 mil dólares e acho que a partir daí luteria se popularizou muito sendo mais valorizada, respeitada e consumida, e o pior é que tem idiota por aí falando que a luheria está, desde a época do Hauser I, ladeira abaixo !?!*# Nunca se fizeram tão bons violões sejam eles ortodoxos ou inovadores. Obviamente, se seu trabalho é reconhecido e consumido, você se sente bem!



A. H.: Um de seus modelos mais conhecidos é o modelo "Spiritus". Como surgiu esse projeto? Você poderia descrevê-lo?
R. G.: Como disse, os Fundos Duplo foram os primeiros violões experimentais e aí dei um tempo de alguns anos para assentar a poeira das pesquisas. Em 2001, quando já morando em Santa Catarina, tive uma namorada que é espírita e um dia ela me chega e diz que na noite anterior estivera conversando com um luthier. Achei estranho pois nesta época não tinha nenhum outro luthier de violões na Grande Florianópolis e aí disse-me que foi no plano espiritual. Olha, não acredito em bruxas mas que elas existem, existem, então comecei a ler as seis ou sete folhas de papel que a moça havia escrito durante essa conversa e aparentemente não havia nada de revelador, pelo contrário, umas coisas que pareciam que não funcionariam mas, tinha diagramas e desenhos de violão que me surpreenderam pois ela não entendia bulhufas de violão/luteria nem era desenhista exímia. Fiquei com os papéis e fui analisando-os nas semanas seguintes. Uma única coisa que chamava muito a atenção era que o salto interno era totalmente diferente de qualquer coisa que havia visto. Era apoiado em sapatas longitudinais sobre uma transversal e pelo o que o luthier do além havia lhe falado o fundo tinha que ser grosso algo em torno de 9mm! Deixei passar uns meses e aí como já andava de saco cheio da luteria resolvi por em prática algumas ideias deste escrito e o primeiro violão (ainda com fundo/escala normais) tinha uma estrutura em círculos! E soava muito bem equilibrado, com um som gordo, doce e potente, espontaneamente batizei este experimento de "Spiritus". Apesar da estrutura circular funcionar, era uma grande consumidora de madeiras pois quase se gastava um outro tampo para executá-la, além da trabalheira toda. Resolvi mudar radicalmente o conceito fazendo algo de execução mais funcional com varetas longitudinais para evitar o colapso do tampo e algumas transversais na área do cavalete para direcionar os tipos de frequências que almejava, como também a ideia de torção controlada na área do cavalete e finalmente fiz o fundo grosso com sapatas em cedro do Oregon (Thuya plicata). Foi um desafio de engenharia "luterística" mas extremamente excitante e depois que já havia uma boa película de Goma Laca no instrumento coloquei as cordas e, quase chorei de decepção! Estava muito chocho, o som e a tensão das cordas! Fiquei p... da vida e saí do atelier pisando duro. Horas mais tarde voltei lá para subir a afinação das cordas novas e não acreditei no som, era outra coisa, as cordas estavam numa firmeza boa e o som era rico, equilibrado com corpo de nota a nota e, potente, tanto que uns dias depois alguns violonistas foram me visitar e não acreditaram no que ouviram, achavam que estava amplificado pois tinha muito mais som que um bom violão normal. O negócio da escala levantada é ótimo para tocar nas oitavas além da inclinação tirar mais energia do tampo e este primeiro "Spiritus" pleno acho que ainda está com o Zanon. A partir daí este modelo com fundo experimental passou a se chamar "Spiritus XXI" e o com fundo normal "Spiritus XX". Fiz uns 15, 20 violões "Spiritus", tem um até na Nova Zelândia!

A. H.: O que o levou a mudar tanto de ateliês?
R. G.: Olha, foi mais em busca de lugares mais aprazíveis para morar como também para contatos profissionais. Minas era ótimo, mas apesar de 14 anos lá sendo 10 como luthier com mais de 100 violões construídos, vendi somente 6 violões para mineiros, a maioria ia para SP, RS, RJ e exterior. Depois fui para a Califórnia onde fiquei 19 meses e lá deu para ganhar dinheiro, se bem que o custo de vida era altíssimo, mas em 1 ano e 4 meses de trabalho fiz e vendi 20 violões. É um grande país os Estados Unidos, onde se encontram as melhores ferramentas, máquinas, madeiras, literatura da área e como gosto muito de ler, fiquei apaixonado pelas bibliotecas de lá e, não fiquei mais tempo porque tinha muito americano... (risos) Já Santa Catarina era estratégica pois uma das minhas melhores clientelas estava no Rio Grande do Sul e também a proximidade do Uruguai e Argentina com esse negócio do Mercosul e tal. Sem dúvida Floripa é a melhor capital brasileira para se morar, só que quando cheguei lá em 1999 violão clássico era inexistente, mas com o Mantovani por lá parece que está se desenvolvendo, já tem até bacharelado em violão pela UDESC. Fiquei um ano e meio na Ilha e depois me mudei para um sítio no continente pois a Ilha no verão fica um inferno com as hordas de turistas. Em termos de espaço e local foi o melhor atelier que tive.


A. H.: O que o motivou a, no ano passado, aposentar-se da luteria?
R. G.: Eu venho desde 2000 querendo parar pois os vernizes estavam me fazendo mal, além de que é um trabalho duro a luteria de qualidade e nunca se ganha o que vc acha que vale, mas como não tinha outro ganha pão, fui engolindo a necessidade. Consegui contornar o problema dos vernizes com um luthier de violinos iniciante que começou a fazer para mim em Goma Laca aplicada a pincel, um bom trabalho. O Luciano da Silva envernizou uns 20 violões para mim e no final do ano passado sua esposa me comunicou que ele havia falecido com menos de 40 anos de idade também por causa desta porcaria de vernizes.
Outra postura é que hoje o mundo tem mais violões do que se precisa. Você vê nas lojas da Europa, EUA e Japão com dezenas de violões à venda, bons violões de luthiers de renome e virou moda colecionar violão e estes colecionadores em geral não tocam quase nada e tem 20, 30, 40 ou mais instrumentos, então para se fazer um bom violão necessita-se de 4 tipos de madeiras = 4 árvores abatidas (claro que de uma árvore se extrai madeira para dezenas de violões) então vocês que moram em cidades não tem ideia da devastação que acontece nas matas brasileiras e não há IBAMA ou Greenpeace que contenha esse apetite de madeiras, de grana, são meros atenuantes, ainda que o consumo da indústria de instrumentos musicais nem se compara com a moveleira, é enorme o consumo então, literalmente, me recuso a usar madeiras recém cortadas, só plantadas (Pinus sp./Eucalyptus sp.) mas sou favorável ao reciclado e no nosso país ainda se encontra, cá e à colá, uma porta em Cedro (Cedrela sp.) ou uma mesa em Jacarandá (Dalbergia/Machearium sp.) mas nada para tampos e talvez na Suíça, Áustria, Itália e Alemanha possa se encontrar em demolições de casario antigo um bom Alpen fistche, Abeto (Picea sp. ou Abies sp.) um Abeto rosso. Para completar os motivos, lidar com artista já é difícil e artista duro, miseravelmente mais difícil, mas claro que, como toda regra, há exceções.
Uma das razões que o violão clássico e a lutheria no Brasil ainda não vingou plenamente é porque, em geral, a relação comercial entre as parte interessadas é amadora, talvez fruto do caráter da anarquia organizada que impera neste país. Os caras, em geral, não pagam na data estipulada e, se bobear, ainda te enrolam, além de que pedem desconto, barganham com teu suor! Luteria de violão é sangue, suor e lágrimas. Suor porque é feito a mão, sangue porque vira e mexe vc corta um dedo e lágrimas porque é uma novela para se vender um violão! Também, hoje, tem um monte de gente nova tocando violão e alguns até muito bem mas, tem uma mascaração... São tantas estrelas que nem dá para ver o céu! Anos atrás assisti um violonista de São Paulo tocar num concurso e até que tocava direito, mas era melhor que ele fosse fazer teatro ou dança pois era uma "misencene" só, que atrapalhava quem queria vê-lo e escutá-lo. Acho que pela própria singeleza do violão perante outros instrumentos eruditos, necessita-se ter um penacho bem maior e, infelizmente, as Artes exercidas profissionalmente são extremamente competitivas quando estamos numa extrema carência de maior cooperação.
Em resumo, perdi o tesão pela luteria como profissão já que a matéria prima não são somente meras chapinhas de madeira, mas árvores, micro ecossistemas. Como sua extração é danosa e, principalmente, não há uma preocupação que se efetive um manuseio menos agressivo. Até que isso venha ocorrer, babau, floresta, já eras! Agora a Dna. Luteria como ofício, como artesania, é maravilhosa vc tirar som, dar vida sonora as madeiras, é pura alquimia! Então, foi um longo casamento com ela, tivemos 200 filhas (guitarras) e, no final, ainda nos amávamos mas, eu não a suportava mais!

A. H.: Como você vê o panorama da luteria nacional que você está deixando, especialmente se comparado com o panorama que você havia encontrado quando entrou na profissão?
R. G.: Bem melhor do que há 26 anos atrás. Quando comecei em 1980 haviam o Suguiyama, o Vergílio que já trabalhavam, o Munhoz, o Abreu, o Mário Jorge, estavam começando e o Laurentino e o João Batista trabalhavam na Gianinni e hoje parece que tem mais de 80 luthiers de violão Brasil a fora, o que é muito bom para os violonistas mas, extremamente tenebroso para o meio ambiente, vão acabar com os poucos jacarandás em pé restantes! Levando-se em conta que é com 80 anos que um jacarandá jovem começa a dar toras com cerne suficientemente largo para fundos de violão e o único projeto atual para replantio de Jacarandá da Bahia (Dalbergia nigra) é o da Florestas Rio Doce em Linhares - ES que começou a 30 anos atrás então, 2 gerações de luthiers não terão esta espécie extraida de forma sustentável e, mesmo assim, talvez a qualidade da madeira não seja tão boa como a silvestre. Um bom jacarandá é de 150 +++ anos...

A. H.: E como você vê o panorama dos violonistas brasileiros?
R. G.: Anos atrás o Turíbio disse que o Brasil, em termos de violão, é campeão peso-pesado no cenário internacional. Concordo. Hoje com o avanço da TI ficou totalmente acessível informações sobre esta área então só enriquece o conhecimento o qual reflete no tocar. Foi-se o tempo em que o violonista era um bicho da seda e hoje já sai-se do casulo e voa-se. Sempre tivemos talentos e sempre os teremos mas, infelizmente, quase ninguém vive de concertos neste país e a maioria vive de dar aulas. O perigo é que pode chegar um momento em que teremos mais professores (desempregados) do que alunos! Somente cabe aos violonistas mudarem este panorama com campanhas agressivas de conscientização e formação do e de público. Agora, tem que ser de forma profissional, séria, eficiente, competente, atraente. Tem que acreditar que é a melhor e mais importante coisa do mundo!!! Volto ao ponto da cooperação para acabar com as panelas de fulano ou sicrano, pois estas são entraves sérios para uma melhora no meio de trabalho dos violonistas, além do que mostra uma "ciúmeira" mesquinha da insegurança babaca destes líderes de caçarolas. Corporativismo local não ajuda o geral. O violonista brasileiro ainda tem que sair do país para ter chances numa carreira de concertista.

A. H.: Numa entrevista dada em 2000 para Thiago Magalhães, era possível ver um Roberto Gomes cheio de ideias e projetos: você comentou de escrever um livro sobre luteria, fazer atividades didáticas para fomentar a luteria nacional, e até criar um festival em Santa Catarina. O que mudou do Roberto Gomes de 2000 e o de 2006? O que motivou essas mudanças?
R. G.: O livro e cursos sobre luteria gerariam mais consumo de madeiras e como falei acima, hoje sou contra a extração de árvores nativas em qualquer lugar do planeta. Temos que reduzir, reciclar, reusar e recusar pois estamos de passagem nesta vida e somos responsáveis pelo o que deixaremos para os nossos filhos e netos, mas tenho escrito um livro sobre memórias e, quem sabe, um dia o publicarei. Quanto ao festival, já quase tinha fechado com o Oscar Ghiglia e a Elena Papandreou e conversas com o Bellinati, Llerena, o Nicolas de Souza Barros e o Guilherme de Camargo, mas fiquei mal por causa dos vernizes e estava sem condições técnicas para nada, só para cuidar da saúde.

A. H.: Ainda há esperança que você contribua para a luteria?
R. G.: Olha, acho que fiz minha parte, minha contribuição para a luteria nacional sugerindo alguns novos caminhos para a construção de um violão potencialmente melhor então cabe ao luthiers vindouros aproveitarem ou não estas ideias.

A. H.: Como você gostaria que fosse o futuro para você?
R. G.: Ah! Saúde, Paz, Amor e... mais tutú! Para todos nós!

A. H.: Há algum assunto que você gostaria de tratar nessa entrevista que não foi tratado ainda?
R. G.: Sim, obrigado. Plantem árvores!

A. H.: Pra quem você daria um violão?
R. G.: Doei 3 violões para prêmios de concursos. Um para o José do Carmo Silva, talentoso ex-aluno que mal tinha o que comer e, infelizmente, morreu jovem de problemas coronários. Recentemente doei um para a promissora violonista uruguaia Cecília Siqueira.

A. H.: O que é pior que cortar madeira pra fazer palito de dente?
R. G.: Cortar mata nativa de cerrado para fazer carvão para o churrasquinho do final de semana.

A. H.: Qual é a pior desvantagem de ser luthier?
R. G.: Ser luthier.

A. H.: Qual é a maior vantagem de ser luthier?
R. G.: Ser luthier.

A. H.: Qual sonho você ainda não realizou?
R. G.: Namorar a Luana Piovani (minha mulher vai me matar!)

A. H.: Qual recado você deixaria pros visitantes do Violão.Clássico.Weblog?
R. G.: Rir ainda é o melhor remédio!

A. H.: Roberto Gomes, muito obrigado pela entrevista!

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PS.: Entrevista publicada em 2006, no antigo site polêmicos.com.br

Fotos:
http://www.luth.org/conventions/1995_conv/1995_conv1.html
http://anteseramostaofelizes.blogspot.com.br/2014/03/carta-ao-criador.html
http://www.guitanda.com.br/instrumentos/cordas-dedilhadas/por-luthier/roberto-gomes/rgomes-spiritus2007.html